segunda-feira, 30 de julho de 2012

MULHERES DE BOTAS!

Mulheres de botas pisam fundo
Mulheres de botas caminham longe e não perdoam
Mulheres de botas bebem nas botas e, dizem, vomitam nas botas
Mulheres de botas nunca andam sós, os pés caminham junto delas
para onde as botas as quiserem levar

Botas vermelhas, de canos longos, de salto baixo
Botas de chuva, de couro, de borracha, botas amarelas
Botas coloridas, de caveiras, botas velhas e empoeiradas
Botas salto alto, cano curto, bota de assassina
com meu coração na mira

Mulheres de botas comem idiotas no almoço
Mulheres de botas não jantam, ceiam covardes com prazer
Mulheres de botas suas maníacas de taras alheias
Os desejos de pés de mulher escondidos sob botas
que só mulheres de botas sabem usar

Botas pretas, de camurça, botas sem sola de camisola
Botas de filme de terror, policiais de botas chutando
abobados que amam mulheres de botas
Botas safadas que saem pela estradas escarniçando
e pisando panacas como nós

Mulheres de botam pisem em todos nós
Seremos esmagados com prazer
Mulheres de botas não perdoam, fumam a alma
dos infelizes que cruzam por suas ruas
Mulheres de botas para nós sempre estarão nuas


NÃO SOU FILHO DE ALEMÃES

Acabei de cochilar no sofá enquanto o Lorenzo assistia TV.
Tomei um copo de Grapette e comi 3 bolachas água e sal.
Estou com frio mas, tipo, foda-se.
Tenho um fone ouvido que funciona um lado só.
A gata corta os fios dos fones. Maldita.
Isso aqui poderia ser a porra de um poema
se eu me chamasse Charles e fosse filho de alemães.
Não é. Não sou nem filho da puta.
Se você poderia estar rico.
Se estivesse rico talvez tivesse uma coleção de fones de ouvido,
muitos deles indestrutíveis por gatos.
Poderia ter muitos gatos, talvez muitos filhos.
Estaria bêbado,
pois os ricos que não vivem bêbados não merecem viver.
Eu teria um time de rugby que se chamaria Red,
assim em inglês, como bom burguês,
e treinaria nos dias ímpares pois não gosto dos pares.
Meu bar ficaria no porão
(adendo: eu teria um porão, o maior da cidade)
e convidaria pessoas do meu naipe
(baixo, indigesto, porém sincero)
e vez ou outra escolheríamos algum cretino para bater.
Assim, por nada, como convém bater em cretinos.
Mas o Grapette acabou e a bolacha se acumula nos cantos
dos sisos que nasceu depois dos 30.
É, pelo jeito terei que escutar música num ouvido só.
Muitas vezes é preferível ser mono a estéreo.
Pelo menos sei que não estou escutando vozes.
Ou estou?
Foda-se, Lorenzo não vai dormir tão cedo mesmo.
Melhor esquentar o café da tarde.
É difícil não ser Charles.
Nem filho de alemães.

(a imagem é roubada, aliás, como tudo que escrevo é)


quinta-feira, 5 de julho de 2012

ASSIM NASCEU O UNIVERSO

Bóson nasceu na pequena Cork. Sua família morreu na grande fome de meados do século XIX. Como todo desgraçado irlandês, fugiu, órfã e solitária, da morte quase certa. Os irlandeses mais ricos fugiram pra América. Os menos, pra Inglaterra. Os mais pobres, incluindo Bóson, se refugiaram na Escócia. Na Irlanda ficaram apenas aqueles que estavam tão bêbados que não se deram conta que estavam com fome.

Tímida, a imberbe Bóson, acostumada às lides do campo e domésticas, conseguiu o emprego em uma mal-afamada taverna de Edinburgo chamada Clube da Caverna, em inglês "Cavern Club". Os freqüentadores não passavam de universitários atrás de presas fáceis, nobres escroques e alcoolizados à procura de rituais pagãos e mundanismo.

Bóson, como toda boa estirpe irlandesa, católica e fervorosa, abominava tudo isso, mas o estômago falava mais alto. Rezava para todos os santos e pedia proteção para sua virgindade. Até que um dia um escocês que, apesar de ruivo e barbudo, era bonito e encorpado, lhe dirigiu olhares indecorosos. Bóson, então com 19 anos, não sabia o que lhe subia pelas entranhas, mas quando fechava os olhos à noite se deparava suando e, tremendo, se despia e esperava passar o calor. 

Até que certa noite, ao lhe servir uma caneca de cerveja forte acompanhada de uísque o ruivo garboso lhe dirigiu a palavra. Seu nome era Higgs e lhe perguntou seu nome, de onde era. Higgs era muito sutil com as palavras e sabia que ali estava uma fruta que tinha caído longe do pé. Uma bela irlandesa de olhos verdes. No outro dia apareceu mais cedo e, pedindo permissão para o dono do restaurante, convidou Bóson para dar uma caminhada pelas ruas de Edinburgo.

Numa viela, arrebatada por elogios e poesias roubadas dos clássicos que Higgs estudava na universidade, Bóson se entregou às carícias de seu companheiro. Despida sob a noite fria da Escócia, Higgs lhe apresentou seu instrumento de penetração e a possuiu ali mesmo, sob as estrelas brilhantes do hemisfério norte. Bóson sentiu tremores pernas abaixo e, quase que rezando, gemeu. Era setembro. Uma voz ao fundo cantarolava "A Day in The Life". 

Foi neste dia que nasceu o Universo.



quarta-feira, 6 de junho de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 25 (ÚLTIMO)


Capítulo 25

Minha cabeça doía e eu não sabia onde estava. Era um quarto. Mas um quarto aonde minha cabeça ainda tentava entender o que era. Não era de motel. Não tinha tevê pendurada, espelho grande na parede ou no teto e muito menos tinha um aparelho de televisão. Uma brisa leve entrava pela janela, a luz do sol entremeada por pedaços de cortina esvoaçando. De longe um som de música, Lou Reed se é que meu cérebro não virou uma geleia. Alguém cantarolando sozinho, quer dizer, fazendo uma segunda voz em cima da do Lou. Satellite of looove! Satellaaaaai! No quarto nada que me indicasse com quem diabos eu tinha dormido. Se eu tinha trepado. Estava nua. Mas as roupas não estavam no quarto. Fora isso o torpor da ressaca e a vontade louca de tomar uma Coca-Cola me impediam de imaginar o que eu sentia. Pelo menos minha carteira estava do lado da cama e um isqueiro, que não era meu pois eu não tinha comprado isqueiro, se é que não comprei. O vento começou a vazar mais forte pela cortina e fiz menção de me levantar e encostar o vidro, mas a preguiça venceu. Era divertido curtir o vento desenhando formas pela fina cortina da janela enquanto eu sentia a nicotina entorpecendo meus pulmões. Respirei fundo e esperei. A música que vinha pela porta, era outra, alguém, o alguém que eu estava junto, tinha colocado uma coletânea, por certo. Agora era um Hey, sugar, take walk on the wild side. A festa deve ter sido boa. Minha garganta ardia. Quase certo que era azia de champanha. Os pés do alguém, descalços, foram chegando mais perto. O alguém apareceu contra a luz da porta e eu não enxerguei de cara quem era, a visão ainda turva do sono. Dormiu bem? Me perguntou a voz. Sim, respondi sem pensar. Chegou mais perto. Era Léo, vestindo um jeans e a camisa aberta. Numa das mãos carregava uma caneca e noutra um copo. Coca ou café? Perguntou. Coca, respondi. Ele se aproximou e me entregou o copo. Começou a beber do café. Pegou o cigarro da minha mão e deu uma tragada. Não sabia que ele fumava. Ou não lembrava. Pensei em falar, mas não falei. Ele riu pra dentro, baixinho, quase silenciosamente. Um sorriso lindo. O mais lindo que eu poderia esperar. A boca dele é linda. Seus olhos castanhos brilham e ele os deixa de fora por entre o vapor do café. A fumaça de cigarro que sai pelas minhas narinas não é a mesma de ontem. O vento que agora bate em meu rosto é diferente. As paredes não são tão paradas e vazias como eram antes. Minha sede é maior que jamais foi. Minhas pernas tremem. Sinto o vagar dos anos que ainda não vivi. Ele tira a caneca do rosto e abre um sorriso sem dentes. Um sorriso safo. Pega na minha mão e acaricia meus dedos. Terminamos nossas bebidas e ele senta ao meu lado, braços pra trás. Me aconchego em seu peito e ele me abraça. Ele vai falar, mas eu tapo sua boca com minha mão direita. Não fala, digo. Ele não fala. Me enrosco em suas pernas e fecho os olhos. Bendita champanha.


quarta-feira, 30 de maio de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 24


Capítulo 24

Desde sempre homens e mulheres se desafiam. Dizem que a primeira bebida fermentada no mundo foi uma fruta que apodreceu e um homem esfomeado a comeu e viu que o lance dava barato. Então começou a colher frutas e as deixar apodrecer para tirar o suco e beber. Alguns especialistas dizem que essa industrialização foi o início da sedentarização do homem e o fim da sociedade matriarcal. Com o homem produzindo perto de casa, ele queria mais poder, por certo. A mulher, que antes mandava na tribo enquanto os machos saíam pra caçar, e só enchiam ela quando queriam sexo, deu um jeito de manipulá-los. Foi daí que nasceu o domínio pelo sexo. Os homens, tropicando após ingerir um pouco da goroba, queriam coisinhas com as mulheres. Estas criaram regras. As regras. Toda as regras. Antes não existiam regras. São as regras que nos comandam, nós homens, até hoje. Marina conhece as regras por instinto. São milhares de anos em que elas são passadas geneticamente e vão sendo melhoradas e adaptadas, independentemente da sociedade que tenta as cercear. Pelo medo ou pelo terror. Nada pode vencer as regras que existem desde sempre. As regras são como as frutas que caem do pé e fermentam ao sol. Por mais que tentem destruí-las, elas governarão a Terra. Duvide quem quiser. Mulheres e champanhas governam o mundo.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 23


Capítulo 23

Quico estava com fome, afinal, era muita champanha para pouca proteína. Baixamos de táxi porque eu não queria dar chance pro azar de novo, vai que fura um pneu e eu, na rua, sem estepe, por aí, largada, com um amigo gay pra ajudar a pedir ajuda? Não. Tô fora. Quico queria comida chinesa, mas eu disse não. Eu queria algo mais massudo. Me deu a louca e pedi pra descer num bauru. Em Porto Alegre é assim, lugar onde tem bauru a gente chama de bauru. E bauru é um pão cervejinha, um pão que parece uma bunda com um rego fundo, enoooorme, com um bife enooorme dentro e cebola e queijo e, se quiser ovo. É um absurdo. Quico me olhou com um olhar de quem diz goooorda, mas desistiu de falar. Ficou na porção de fritas, nervoso mergulhava as batatas no fundo do pote de maionese, que veio junto com o meu bauru e eu devorei como uma cavala, cansada que tava de ver tanta gente, os espanhóis, comendo carne e eu só na salada e na enganação. Fodam-se os pneus que podem inflar. Amanhã eu furo eles caminhando no Parcão. Dou um jeito. Durmo um dia todo. Não como nada na semana que vem. Vivo de água e bolacha integral. Dane-se! Esse é o melhor lanche janta que fiz nos últimos anos. Dane-se o bafo de cebola. O cheiro de carne. Léo, me espera. Caminhamos um pouco e paramos num posto de gasolina. Compramos garrafinha de champanha e vamos bebendo pela rua como se fossem long necks.

Estava tão bom caminhar pela rua e pela noite que tinha ficado tão fresca e iluminada que não dava vontade de pegar outro táxi, outro stress, outro sujeito contando, falando, enchendo, saindo e entrando em curvas, que decidimos fazer o resto do caminho até a festa a pé. Não era muito longe. Só umas três ou quatro quadras. Como se fosse verão e eu voltasse a ser adolescente em Capão da Canoa, Atlântida, quer dizer. As noites na praia, alguns quilômetros pela noite, bebendo capeta e falando bobagens com os guris da rua. Tudo era festa no verão e nós éramos garotas estúpidas de classe média somente querendo beber longe dos pais e fazer fiasco. Quico completou. Era mesmo bom no verão, não é? Não sei como ele chegou no comentário que eu esperava, afinal, eu só estava pensando e não contando, como conto para vocês, mas Quico sentia o mesmo que eu, só que com um ar de nostalgia reprimida. As suas lembranças eram truncadas pelo preconceito. Me deu a mão e começou a pular e rir. Tu pegou dinheiro, doida? Não. Quem pagou a conta no bauru? No posto sei que tu pagou no cartão, mas quem pagou meu lanche? Quico riu mais alto. Ninguém. Soltou minha mão e saiu cantando na frente: De jeito maneira, não quero dinheiro, quero amor sincero! E ria como uma criança em pleno verão. Um adolescente bêbado em êxtase pela beira-mar fria e agitada do litoral gaúcho.

terça-feira, 22 de maio de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 22


Capítulo 22

Quico vem e me abraça. Quico é verdadeiro. E é homem. Muito mais que muitos dos que conheço por aí. Convido ele pra ir junto comigo para casa. Ele concorda. Antes passamos na casa dele e ele pega uma muda de roupas. Chiquerésimas, me diz. Depois vamos para a minha casa. Enquanto Quico beberica o champanha que ainda restava na geladeira, caralho, quanto bebi ontem? Eu tomo banho. Depois ele toma um banho enquanto eu coloco minha roupa. Coloco um Bowie para dançar. Modern Love. Bowie é bom até quando é pop e brega. Quico sai do banheiro já vestido e com uma toalha enrolada na cabeça. I catch a paper boy / But things don't really change / I'm standing in the wind / But i never wave bye-bye. Nos juntamos, secador na mão, cena mais clichê do mundo. But I try. I tryyyyeeeee! E nos atiramos no sofá rindo sem parar. Bebemos a garrafa de champanha no bico e Quico me dá um selo na boca. Sinto o quentume subindo pela garganta e monto nele. O agarro com força e meto a língua dentro de sua boca. No começo ele responde, mas depois pára e eu me levanto puta. Porra, Marina! Tu é demais, amiga! Demais! Eu começo a rir de mim mesma e voltamos a dançar. Quero dançar. Quico não se importa. Ele também quer. Mas não comigo. Ele gosta de meninos. Eu não o condeno. Adoro homens. Já tentei não gostar. Juro que eu tentei. Mas não nasci para ser lésbica. Uma ou outra vez, mas mulher, não sei, os homens têm razão, mulher só incomoda.

Eu era bem mais nova, não que eu não seja nova hoje. Era mais nova. Andava com uns roqueiros, coisa de guria, eles tinham uma banda porto-alegrense. Dessas que nem vale a pena mencionar. Faziam sucesso nos anos 90. Eram os queridinhos do underground. E eu andava com eles. Cheguei a morar na pocilga onde eles moravam. Durou pouco tempo. E tinha uma guria que era louca por mim. Tássia era o nome da doida. Pintava os cabelos de preto e rosa e me seguia insana. Stalker mesmo. Até que uma noite depois de uma garrafa de vodca, na época eu era uma dessazinhas que me deixava levar pelo glamour da vodca pura, coisa de estudante de faculdade metida a artista que eu era, ela veio com uma conversa de que eu precisava dar um beijo nela, nem que fosse só por dar mesmo, as lésbicas são viris, mais viris que os homens, quando querem uma mulher. A tal Tássia me agarrou mesmo. Quase à força. Depois me acamei. Continuei um pouco, mas quando peguei no queria realmente encontrar me senti castrada. Eu precisava de um pau. Ela queria outra coisa. Não era justo. Ela insistiu. Eu não sou viril mas sou da pá, entendem? Da pá virada. Dei-lhe um tapa com as costas da mão daqueles que homem mau dá em mulher em filme antigo, sabem? Aqueles que aprendi com meu mano mais velho. Ela deu um rodopio pra trás e começou a chorar de raiva. Não revidou. Não falou nada. Nunca mais me olhou nos olhos. Quando eu a encontrava em festas ela dava um jeito de agarrar a primeira que aparecia e fazia questão de ficar se esfregando perto de onde eu tava. Fiquei com medo. Mulheres me dão mais medo. Prefiro os homens. São safados, mas, na maioria das vezes, burros. Os coitados.

Queéisso, Marina? Pra cima! Quico começou a dançar um Blur como, agora, uma bicha louca mesmo, enquanto procurava outra champanha na geladeira e fazendo sinal de negativo com a mão, cantava: Girls who are boys who like boys to be girls ...


sexta-feira, 18 de maio de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 21


Capítulo 21

João pega um táxi para buscar seu carro e, depois, quem sabe, passar no seu trabalho pra enganar que passou o dia numa obra. Homem cafajeste sempre arranja desculpa. Nem que seja tão furada que pareça verdadeira. Essas são as melhores. Eu e Léo vamos em outro na seqüência. Direto para o estacionamento. O funcionário, com a mesma cara de sono da manhã. Fumava o mesmo cigarro. Mas me olhou diferente quando cheguei com Léo. Abrimos o porta-malas e conferimos o estepe. Estava inteiro. Nem pensamos muito pois as nuvens de chuvas se dissipavam e tínhamos um pneu de carro para trocar. Tínhamos, não. Léo tinha. Ainda bem que usávamos o mesmo tamanho de pneu, acho que é tamanho que se diz, e Léo ficou depois de me comprar um estepe novinho. Ele tirou o paletó, nem me dei conta que ele usava um. Logo eu que odeio esses chatos de paletó. que sempre fui a rebeldosa que queria um Stone pra me levar embora. Tá, poderia ser um desses Galagher feioso também, desde que me levasse para sempre numa louca aventura romântica. Léo agora está ficando com a barba escurecida. Um cheiro de homem limpo que vai suando aos poucos. Eu floreando sobre nhaca e ele ali de mecânico trocando aquele pneu furado. Por companheirismo, aguardei. Assim que terminou nos trocamos números de celular e ele prometeu que me ligava. Pensei que ia me cumprimentar com um beijo, mas não. Se moveu para o lado, entrou no carro e depois levantou a mão esquerda e sorriu para mim, eu, estatelada do outro lado da rua acendendo um cigarro, agora sim, da marca que eu fumava quando não era ex-fumante, e levantando o braço com o cigarro aceso de volta. Terminei de fumar e voltei voando para a agência.

Cocó nem se importou de me ver chegar mais que depois dele, com outra roupa e ainda fumando o cigarro que acendi no térreo. Entrei prédio a dentro fumando. Antes passei pela faxineira, Kátia, o nome dela, e lhe devolvi as sandálias emprestadas. Agradeci e ela disse um "não tem de quê" tímido. Agora eu tinha uma bolsa de novo e uma mulher sem bolsa não é uma mulher completa. Uma mulher tem que ser muito homem para sair sem bolsa, mãos nos bolsos, fumando um Marlboro e fazendo barulho de quem tira carne dos dentes com a língua. Tá, exagerei. Cocó se levantou e veio até a minha mesa todo desejoso. Nem me deixou sentar e já me mostrou o local onde os espanhóis tinham assinado o contrato. Disse que eles estavam muito excitados e queriam uma festa mais pesada. Fiz uma cara de quem diz. Mas não é num puteiro, não é? Não era. Eles queriam dançar a valer e eu era a convidada mais que especial. Pensei se Léo estaria na festa. Mas não perguntei. Paulo passou depois mesa por mesa e cumprimentou a todos. A partir da segunda teríamos muito trabalho, mas hoje era dia comemorar. Abriu uma champanha e me obrigou a tomar um gole. Tomei uma garrafa. Tinha que dirigir até em casa, tomar um banho. Me arrumar. O estagiário, o tal Pe, pa, seiláquemé, me olha e eu puxo do bolso o dinheiro que a trouxa, quer dizer, a mulher do safado que eu nem quero mais lembrar e acabei não dando nada ontem de noite porque o incompetente nem me comeu, me deu. Ele pega e me dá um beijo na bochecha. Ele é tão fofo! Pára, Marina. Nada de mulherzice agora. Concentração. Sorrio de volta e agradeço o empréstimo e o beijo. É tão bom tratar bem uma mulher. Os homens, ou os que acham que são, tem esse costume de nos desdizer. De nos passar pra trás. Mas não queremos bananas, pelo menos eu não quero, subservientes. Queremos alguém que nos trate com carinho, atenção e que seja um pouco tarado, óbvio. Sempre me envolvi ou me apaixonei, ou os dois, pelos canalhas e algumas vez ou outra por um banana, o que deu no final era que o banana era tão ou mais canalha que o original. Pelo menos o original era o que era. O banana é o que não tem coragem. E existem aqueles homens que não são nem canalhas, nem bananas e nem a mistura dos dois. Existem os verdadeiros. Muitas vezes confundimos eles com canalhas. Ou com bananas. Mas não. São apenas situações. Tudo depende de como a situação se cria e se perde. Os verdadeiros não criam. Nem perdem. Eles simplesmente deixam estar.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 20


Capítulo 20

Os porteiros existem desde a antiguidade. Não sei dizer ao certo se desde o Egito, mas certamente desde aquelas cidade-estados da Mesopotâmia, Grécia ou Israel. As cidades cercadas por enormes muralhas para se protegerem dos inimigos e um portão de entrada. No portão, guardiões. Os porteiros de então. Imagino que os porteiros sabiam muito mais que os próprios governantes. Os porteiros sabiam tanto que poderiam ser os governantes. Os porteiros viram Jesus adentrar Jerusalém se é que existiu Jesus. Jerusalém dizem que existe, mas prefiro crer que um deles sabia que Sodoma ia virar fósforo nas mãos do deus hebraico e deu no pé antes disso. Os porteiros da Grécia eram, antes de tudo, uns boca abertas, claro. imagine o tapado que deixou entrar o cavalo em Tróia? Deveria ser um tapume de burro.

Os porteiros da Idade Média também deveriam ser uns fofoqueiros de marca maior. Naqueles séculos onde todos eram vigiados ao entrar e sair por muros altos de cidades fechadas, os porteiros eram os soldadinhos com poder da vez. Entrava quem eles gostavam. Valia muito mais suas decisões que as predições do chefe local. Com o advento do mundo moderno, os porteiros foram se esparramando pelos prédios, fábricas, casas e países. Os porteiros são os guardas de fronteiras, os policiais de posto fiscal, os leões de chácara das festas. O porteiro é o sujeito com mais poder não discutido do mundo.

Em Porto Alegre existiu um porteiro que sabia tudo que acontecia no prédio em que trabalhava, claro. Só que em vez de fofoquear, ele guardava. Jamais falou algo além de bom dia, boa tarde ou boa noite fulano. Todos o respeitavam e mesmo quando estavam em situações constrangedoras ele ajudava sem reclamar, sem perguntar e sem julgar. Ele estava ali apenas para cumprir seu dever de porteiro e não se meter na vida alheia. Um dia um raio atingiu um poste ao lado do prédio e a corrente se estendeu por toda a calçada. Uma frondosa árvore, dessas que pessoas se juntam para abraçar e proteger, resolveu que era hora de desabar sobre o prédio, o que ocasionaria muitos problemas, talvez, mortos e feridos. O porteiro prontamente se retirou de sua base e se atirou em frente á arvore, tomando choques que lhe causavam dores terríveis e tentou segurar a árvore. Por mais impossível que possa parecer, a árvore parou na metade da queda e o porteiro ficou ali, frito, entre o chão e o tronco. Depois que a luz caiu e chegaram os técnicos, acreditaram ser um galho preto colado ao chão, mas não. Era o porteiro. Aquele que jamais reclamava. Os moradores ficaram muito agradecidos, a polícia arquivou o caso e ninguém mais citou o nome do porteiro. Dois meses depois o porteiro substituto relatou a existência de um fantasma. Alguém que abria e fechava as portas na frente dele e lhe contava as histórias mais escabrosas dos moradores. Pediu demissão em seguida, O prédio nunca mais encontrou outro porteiro que trabalhasse lá. Aos poucos os moradores foram se mudando e o último disse ter visto um vulto se esgueirando enquanto fechava o portão já tomado pelo ermo. Um verdadeiro porteiro jamais abandona seu posto.



quinta-feira, 10 de maio de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 19


Capítulo 19

Caminhar já não é um bom exercício pra quem só faz pilates quando se lembra, então imagina para alguém de ressaca que resolve voltar a fumar depois de um tempo sem fumar e ainda tem que encarar uma lomba debaixo de uma chuvarada. Léo começou a rir da situação e eu comecei a lhe contar do que tinha acontecido desde a manhã, ele só sabia da parte do homem trancado na minha casa. Ele ria cada vez mais alto e isso serviu muito para diminuir o impacto da subida no meu corpitcho combalido pela batalha.

No prédio o porteiro me olhou curioso, mas abriu a porta sem perguntar nada. Os porteiros sempre sabem mais da minha vida que eu mesma aposto. Eu quase não sei que horas saio ou volto pra casa. Os porteiros sabem. Eles sabem quando mudei de namorado, de caso, ou se chego bêbada e solteira ou se saí de táxi ou de carro. Eles sabem tudo. Poderiam escrever um livro se soubessem escrever. Ou quem disse que um deles não é por acaso um desses escritores nerds reclusos que aceitou o cargo de porteiro só para fofoquear a vida alheia e ter idéias para suas histórias? Vai saber. Eu prefiro nem imaginar. Nem quero imaginar o encontro com o tal João do outro lado da porta do meu apartamento. Batemos na campainha só para avisarmos que já chegamos. O porteiro foi avisado que chegaria um chaveiro dali a pouco. E o chaveiro realmente não demorou muito a chegar. Disse que como o caso era de chave perdida nada mais normal que ele abrisse com uma chave micha mesmo. Fico imaginando se esse também não se aproveita e daqui a pouco sai por aí assaltando casas de incautos, mas, imagino, ele não faria na minha. Não tem nada para roubar. Só algumas roupas e bolsas de grife que ele não saberia onde vender e daria pra qualquer putinha em troca de um boquete.

João me olha assustado. Ele me parece menos bonito, bem menos, que ontem. ainda mais perto do Léo. Procuro rapidamente minha chave reserva. Agradeço por encontrá-la logo. Abro o armário do quarto e salta uma caixa de sapato onde guardo essas coisas e a chave cai direto no meu colo. Pego a chave reserva do apartamento dentro da mesma caixa e troco de roupa. Coloco um calçadinho baixo para não correr o risco de andar por aí de salto quebrado de novo e Léo conversa com João na sala. Eles riem alto. Quando volto pergunto o porquê de tantas risadas. João ri e me explica que agora, mais calmo, não pode parar de rir só imaginando a cara da mulher. Ele tem que buscar o carro no estacionamento onde deixou ontem de noite quando veio comigo pra casa. O que? Tu me deixou dirigir naquele estado? Que estado? Pergunta ele. Doida de champanha. Ele ri alto. Não sei como dei pra um idiota desses; Nós dois estávamos muito bêbados. Mal nos beijamos e tiramos as roupas, ou tentamos tirar, e quando me dei conta estava aqui, num quarto que não conhecia, no escuro e atrasado para o meu trabalho. Nós não fizemos nada? Pergunto. Não. Ele responde. Até onde eu lembro, só uns beijos. Mais nada. Léo ri mais que ele. Eu me viro com raiva e volto para o quarto. Me olho no espelho antes de ajeitar o cabelos, prendendo, claro, porque depois de tanto desastre meteorológico, só prendendo, e começo a rir. Mais alto que ele. Eu não dei. Nem bêbada alguém me come. Eu sou uma desgraça. E voltei para a sala.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo18


Capítulo 18

Um taxista no passado, ou no presente, não se sabe ao certo, aparecia nos momentos mais inesperados, tal como o chaveiro que lhes contei a história antes, e levava as pessoas para onde realmente elas queriam ir e não aonde elas pediam para que ele as levasse.

Uma guria de uns vinte e poucos anos pediu para que ele a levasse ao hospital, quer dizer, ela não disse, mas levava a mão na barriga e pediu pra deixá-la na Doutor Flores no Centro, perto de uma clínica clandestina de aborto. O taxista, que sabia o porquê dela pedir tal destino e passara por ali justamente por isso, a levou para a casa do pai da criança. Ela olhou para o taxista, chorou e pediu para que ela o levasse para outro lugar. Ele deu de ombros. O pai da criança estava chegando em casa. Tinha sido despedido e sua mãe abria a porta da casa quando viu o táxi e a menina dentro dele e compreendeu tudo. Eles conversaram e hoje em dia um padeiro de nome Sérgio tem um ajudante que é um belo dum rapaz, a cara da menina.

Outra vez um velho pediu para ir para casa, mas o taxista, que já sabia de suas intenções, o levou para um bar da Cidade Baixa. Lá, em uma mesa repleta de velhos amigos, se comemorava o aniversário de uma senhora dos seus sessenta anos. Todos estavam sorrindo e bebericando vinho ou cerveja, quando o táxi aportou, as cadeiras perto da rua, e todos olharam o velho e se levantaram. Fazia vinte anos que ele não se encontrava com eles. Tinha brigado com um deles por causa de uma mulher. A mulher, inclusive, era a senhora de aniversário, tinha se casado com o amigo e depois se separado. E todos sabiam da história muitas vezes contadas e já por muitos esquecida. Menos pelo passageiro. Ele começou a chorar no banco de trás e não quis sair do táxi. Foi a aniversariante que se levantou da mesa, abriu a porta e o convidou para sentar-se junto a eles. Ele a abraçou e todos se levantaram para abraçá-lo. No outro dia o velho voltou para a casa, de ressaca, e jogou na lata de lixo o revólver carregado que guardava na gaveta da cabeceira da cama.

As histórias do lendário taxista caberiam em outro livro de tantas que foram, mas aqui não é o caso, portanto passo logo para o epílogo de suas aparições, dizem, que aconteceu pouco tempo atrás, quando ele pegou uma certa mulher que caminhava pelas ruas do Centro. Era tarde da noite e ela perambulava solitária pela Borges de Medeiros. Poderia ser uma prostituta. Uma isca de assaltante de taxistas, mas não. Ela entrou no táxi no momento que este parou ao seu lado e nem perguntou porque ele parou e nem disse para onde queria ir. Simplesmente o taxista acelerou Borges abaixo, fez a curva no Mercado e se dirigiu a toda velocidade pela Castelo Branco. A caminhante acendeu um cigarro fino e fedorento e abriu a boca falando palavras indizíveis que só o taxista entendia. Ele só respondeu que o mar era um lindo túmulo e nunca mais se ouvir falar de suas corridas, muito menos da mulher solitária e muito menos ainda de mares perdidos em fins de estrada.

 

quarta-feira, 2 de maio de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 17


Capítulo 17

Estava aliviada. Léo colocou uma música do Oasis, nem gosto muito de Oasis, ele disse que gostava. "Don't look back in anger" ele cantarolava dirigindo Protásio Alves abaixo quando baixou uma nuvem preta e começou a chover torrencialmente. Mais um pouco e eu acho que chovia granizo. Léo pegou uma rua lateral e senti o baque embaixo do meu pé direito. Passamos por uma poça que escondia um buraco enorme nas pedras da rua. Furou o pneu dianteiro direito. Léo saiu do carro e voltou logo, com a maior cara de desânimo do mundo. O estepe tá murcho. Pensei, mas que diabos, e logo depois imaginei que o meu deveria estar tão murcho quanto o dele. Acho que dá pra andar até um posto? Agora? No meio dessa chuvarada? Duvido. Me respondeu ele. Pegou o celular e chamou um táxi. Sentou ao meu lado e esperou. Estava ensopado. Os cabelos antes alinhados escorridos no rosto. Ele tinha uma bela franja que escondia penteando o cabelo de lado. E alguns fios que estavam nublando. Quase grisalhos. Pensei em agarrá-lo ali. Era a hora. O disco do Oasis estava terminado. Era uma coletânea dele mesmo, acho, e vinha com uma tal de Champagne Supernova que ia crescendo e me fazia lembrar da champanha de ontem e o conhaque que ainda queimava minha garganta. Passei a mão na sua nuca e fiz um carinho sem pensar. Quando ele fez menção de abrir a boca, um vulto alaranjado brilhava ao nosso lado. Era o táxi buzinando.

O taxista era um desses que começa a falar sobre o tempo e termina contando a história da vida. Só queríamos chegar na minha casa, pegar a chave reserva do meu carro e buscá-lo no estacionamento. O tal João era só um detalhe no meio dessa história toda. Mas o taxista queria era falar dos seus sete filhos e dos seus dois casamentos. Olha só, trabalhei, começa ele, trabalhei como um cão danado, criei quatro filhos, tava casado fazia vinte anos e do nada me apaixonei. Foi aqui nesse carro mesmo, peguei uma passageira, mais jovem que tu, ele me olha e ri pelo retrovisor, e quando vi a gente era amante e ela tinha engravidado. Como? Não sei. Sei que faz quinze anos tô casado com a segunda e tenho que pagar a pensão da primeira e mais os quatro filhos, quer dizer os mais velhos já se viram, um até faz a noite do meu carro. Mas não é uma vida louca essa mesmo? A Ju, minha mulher atual, sempre fala, é a maldita espumante, como ela diz. Peguei ela numa saída de casamento e ela tava sozinha, linda, arrumada, vocês tinham que ver, uma princesa, tinha sido dama de honra, imagino eu a lindeza que deveria estar a tal Ju saindo de algum casamento de pobre, mas enfim, a história é dele não é mesmo? E ela me contou depois de anos que estava bêbada e tontinha e quando me viu achou engraçado, me achou mais velho, eu ainda não tinha essa pança de hoje, então ela sentou na frente e em vez de pararmos na casa dela, paramos no motel. Nem cobrei a corrida. Até hoje ela tenta me pagar. Mas eu não cobro. Eu amo ela. É a mulher da minha vida. Dessa vida vou me aposentar, como queria da primeira vez, trinta e cinco anos de carro é muita estrada. Pegar a neguinha e morar em Tramandaí. Já separei uma poupança e tenho uma casa em vista por lá. Criar os guris soltos, ter uns cachorros e no verão dá pra ganhar uns trocos com um carro por lá. Sem pensar muito. Ela trabalha com crianças, se formou pedagoga, sabem? E pra pedagoga sempre tem trabalho, tchê. Eu já ia quase pedindo pra ele parar e eu poder fumar, parar e voltar assim do nada dá uma vontade doida de fumar ainda mais, mas daí o que aconteceu foi que o táxi simplesmente parou. Parou! Parou em plena Goethe, debaixo de chuva e nem me perguntem como. O taxista, que realmente agora via que tinha uma senhora pança foi lá atrás e abriu a tampa do combustível. Depois voltou e olhou pra nós. Podem descer. Eu chamo outro colega pra vocês. Essa merda de marcador não tá marcando nada. Pensei que dava pra trazer vocês, mas acabou a gasolina. Em trinta e cinco anos é a primeira vez que me acontece isso. Sem gasolina. Não acredito. Nem eu, gordo, nem eu.

Toca o celular e é o João perguntando se deu tudo certo com a mulher dele. Sim, filho de uma puta, deu tudo certo, mas ainda não conseguimos um chaveiro. Como estamos perto, apesar de toda a chuva que cai, encontramos uma dessas casinhas de chaveiro abertas e conversamos com o próprio. Ele nos promete que logo estará no meu apartamento e então combinamos de nos encontrar lá e vamos a pé mesmo. O taxista ainda tenta argumentar, mas desiste. Prefiro me molhar toda a escutar mais uma vez essa papagaiada toda de história da minha vida. Odeio a história da vida dos outros. Só gosto da minha e já acho ela um melodrama muito do mal contado, viu narrador?


sexta-feira, 27 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 16


Capítulo 16

Ele tem um carro pequeno, novo, mas um carro de gente normal, quer dizer, como eu, se é que sou normal, e enquanto ligo de volta e fumo pela janela do carro aberta, faz tanto tempo que não faço isso que meu coração chega a disparar, que quase esqueço o nome e a lata da traída. Susana, nome de corna, com certeza, paramos em uma papelaria no caminho para comprar uma cartolina e um pincel atômico. Léo me contou que faz pouco trabalha com os espanhóis. Pegaram ele porque era um jornalista frila sobrando no mercado e tinha boas recomendações, leia-se foi demitido ou se demitiu de algum lugar por bater de frente em alguém maior mas é respeitado pelos colegas. Teve que partir para área frontalmente publicitária do jornalismo. A assessoria de imprensa. No caso dele envolvia tudo, inclusive marketing. Mas ele preferia voltar para a imprensa formal. Não podia mais. Escrevia em um blog o que lhe interessava. Sem nenhum interesse imediato. Repito o que ele diz como quem entoa um poema em meio a uma canção. Não que entoar não seja chato. É, mas é o meu poema e a minha canção, então não é.

O aeroporto estava começando a encher o normal para uma sexta-feira ainda mais com atrasos provocado pela chuva e pela neblina intermitente que domina Porto Alegre boa parte do ano. Não demorou muito para que aparecesse o voô de Susana no painel e nos dirigíssemos os dois, eu e Léo, como dois esquisitos para receber uma pessoa que não sabíamos e nem tínhamos nem a mínima idéia de quem era. João tinha deixado o campo aberto. Nós éramos de uma empresa de eventos que ele contratara por telefone para receber ela no aeroporto porque no momento ele estava impossibilitado por questões de trabalho, questões que nenhuma mulher reclamaria, ou fingiria que não se importa, pois trabalho é trabalho, não é?

Não foi difícil enxergar quem era a tal Susana. Loira, o tipo de loira com quem um sujeito covarde casaria. Bonita, porém totalmente fútil. Veio direto ao nosso encontro, largou despretensiosamente as malas para Léo e nem olhou para a minha cara dando um boa tarde formal e sorrindo um sorriso de propaganda de creme dental. Falsa até os ossos, se descobrissem ela no deserto, certo que era um fóssil de plástico. Totalmente falsa. Aposto que até a raiz dos pentelhos, se é que ela não raspa tudo, essa nova moda de americanizar e achar que tudo é um filme pornô soft da Playboy.

No caminho acendi o cigarro e ela pediu para apagar. Onde já se viu fumar num carro, me deu uma mijada, engoli em seco. Léo ainda puxou assunto perguntando se era bom morar onde ela morava, Petrópolis. Ela respondeu que fazia pouco tempo que moravam ali, ela preferia um condomínio na zona sul, mas o João não queria ficar longe dos amigos de infância, leia-se a comunidade e os contatos, e ficaram por ali, quem sabe um dia, quando tivessem filhos não seria melhor um lugar retirado longe da violência, das drogas e toda aquela balela neurótica de loira de farmácia que assiste muito o jornal matutino e acredita em tudo o que falam. Quando paramos em frente ao prédio, Léo desceu e carregou as malas até a portaria. O porteiro veio ajudá-la. Eu fiquei no carro. Acendi meu cigarro que ainda segurava na mão direita e dei uma bela tragada fitando a idiota nos olhos. Ela fez que não viu. Puxou da bolsa uma nota de vinte reais e quando Léo se negava a aceitar, eu peguei. Agradeci. Ela sorriu de volta. Ele me olhou me condenando e eu pisquei o olho. Nada como cornear uma imbecil e ainda ganhar troco por isso. Boa sorte, pensei. Dei o braço esquerdo para Léo e voltamos para o carro. O dia estava ficando escuro de novo mas para mim parecia o mais belo amanhecer frio de primavera de Porto Alegre. Odeio imbecis, mas odeio ainda mais quando o imbecil é uma loira falsa. Morra.

terça-feira, 24 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 15


Capítulo 15

Paulo pediu um café e eu não aceitei. Café? Nem dirigir eu posso. Léo pediu o dele sem açúcar. Adoro homens que pedem sem açúcar. Nem me perguntem o porquê. Odeio essa coisa de açúcar. Nem quero saber de falar em chocolate. Sim, todas as mulheres amam chocolate. Eu não. Eu não amo nada com açúcar. Isso daí é coisa de mulher fraca. Sem auto-estima. Eu sou ariana, de primeiro de abril, mas sou o máximo. Ainda mais com uma garrafa de tinto na cabeça.

O celular toca depois de décadas. Eu nem lembrava mais do idiota trancado na minha casa e a conversa da corna que tava chegando no aeroporto. Paulo iria com o baby e o velho para a agência e Léo estava liberado. Quer dizer, eu estava liberando ele. João, quase sem fôlego, me falava que tinha feito uma massa dessas instantâneas, era minha única comida na dispensa, e a mulher dele tinha ligado antes de embarcar em São Paulo. Ele inventou uma história mirabolante que mandaria alguém buscá-la pois no momentos estava preso em algo importante no trabalho. O idiota trabalha como arquiteto, daí que me lembro que a festa de ontem era o lançamento de um condomínio horizontal na Zona Sul e este panaca era um dos responsáveis pelo projeto, João não sei das quantas, um desses sobrenomes polacos de judeu que nunca consigo pronunciar. Não era feio. Mas também não era um espanhol, quer dizer, o meu falso espanhol, então nem dava pra comparar. Tomara que eu não tenho chupado o imbecil. Aliás, nem quero saber. Não quero lembrar. Já lembrei demais.

O nome da corna é Susana. Mas chama ela de Susie. E eu com isso? Não queria nem olhar pra fulana. Léo não pode deixar de escutar a conversa. Paulo está preocupado em pagar a conta e os outros não entendem nada do que eu falo. Ele sorri sem chamar a atenção e depois que termina o café pega na minha mão, aliás, pega na minha mão, que coisa, ele pega mesmo, e eu acho que vou cair pra trás, e diz que entende o que está acontecendo. Eu tento me explicar e dizer que não é nada demais e ele responde. Tu vai buscar a mulher do cara com quem tu dormiu no aeroporto. Paulo para de conversar e presta atenção no que Léo fala. Depois faz de conta que não ouviu nada e paga a conta. Os espanhóis agora também entendem algo. Paulo se levanta e se oferece para dar carona pra eles. Fico sozinha com Léo. Eu vou contigo, me diz ele. Fica mais verossímil. Não sei se agradeço ou desconfio. Mas ele pisca os dois olhos ao mesmo tempo e me pergunta se eu fumo. Estou apaixonada.


ARTISTAS DA FOME

O escritor, ou autor, como queiram, é na maioria das vezes um sujeitinho comum, trabalha em outras áreas para seu sustento, em nada vivendo o glamour que os leitores muitas vezes imaginam ser a vida de um escritor. Nos últimos anos tem decrescido o número de leituras de livros impressos per capita no Brasil. Muitas influências nestes dados, e tem gente em muitos blogues e jornais que já escreveu melhor sobre o assunto (procurem no Google, diria Paulo Francis se vivo fosse), o que leva a uma estratégia dúbia para chamar novos leitores para a ficção nacional. A espetacularização do autor.

Não que que o autor-artista-stand up seja alguma novidade no mundo. Muitos no passado se valeram de cachês para servirem de "micos de circo" paraa um público muito mais interessado em ver o autor que escutar o que ele tem a dizer. Na maioria das vezes o autor não tem nada a dizer. Ele já escreve pra isso. Quer entender o autor? Leia o que ele escreveu. Mário Quintana, já octagenário, era visitado a todo instante e, impassível, reprimia: As pessoas chegam aqui e param na minha frente pra me observar. Eram outros tempos. Talvez hoje em dia cobrassem ingresso para observá-lo como faziam nos circos de antigamente, como num conto de Kafka, "Um Artista da Fome".

No atual estágio da educação no Brasil é urgente ultrapassarmos as barreiras da demagogia governamental. Se o analfabetismo se esvai pelos ralos da história, a ignorância ainda impera. O brasileiro não lê. Não tem o costume de ler. A cultura televisiva atropelou todos os processos antes que o Brasil atingisse a maturidade em matéria de leitores. O que temos hoje são algumas dezenas de autores nacionais, localizados em nichos, como o infantil no caso do Gabriel, o Pensador, e outros lançados por celebridades de outras áreas que se fazem best-sellers muito mais por serem quem são do que pelo que escrevem, Jô Soares, Chico Buarque, entre outros. Não vamos ser bobos e achar que o livro de um Jô ou de um Buarque tivesse a mesma repercussão se fosse assinados pelo Pedro da Silva ou pelo  Cláudio Simplório. Até poderiam, mas não acredito.

O autor comum, eu, tu, qualquer um que queira se aventurar pelo mercado literário, é um ninguém sem passado. Veio do nada e o nada é seu destino. Eu, queira ou não, como autor me considero não um "autor de internet" mas alguém que se utilizou do meio para divulgar seus textos. Por e-mail, blogue, até mesmo Orkut, para atingir um público que, enfurnado em meu meio-ambiente, a vida boêmia incrustrada no meio rocker porto-Alegrense, não atingiria. Mas a internet tem um limite. E também é uma armadilha. Aumenta a possibilidade para os que não ultrapassam as barreiras de seus próprios grupelhos, meu caso, mas também democratiza essas possibilidades. A disputa de interesses se altera em parte, e se ajusta com o tempo, onde o antigo QI (quem indica) é alterado pela busca dos leitores por conhecer novos textos e autores. Um mercado onde o leitor procura o autor, não um mercado onde a editora indica o autor a ser lido, através de pesquisas ou por pura preguiça administrativa.

Mas o autor nesse processo se perdeu. A multiplicidade de ofertas fez com que o mercado, como sempre as vanguardas são sugadas pelo mercado, não sejamos ingênuos, recolhesse da quantidade sua colheita de "escolhidos", fazendo uma mescla de novos autores com sub-celebridades ou popstars, Gabriel, o Pensador, queiram, ou não, é um, que se adentraram na feia e bolorenta literatura. Um novo caminho foi se desenhando, os autores que perscrutavam essa nova oferta de leitores, tiveram que se aventurar em palestras, ministrar cursos, oficinas, criarem projetos em conjunto com músicos, roteitos de cinema, se atirar nas verbas de incentivo público, cada vez mais escasso e elitista, dos governos, e, no fim de tudo, ter ele, autor, também tentar ser um popstar. E o popstar tem que ser onipresente. O popstar tem que saber contar piadas, ser engraçadinho na hora certa, entrevistar em programetes de tevês locais, seduzir o público com sua lábia ou sua facilidade histriônica ou de atuação. Enfim, o autor-espetáculo.

Independente de questionar ou não (se fosse eleitor de Bento eu questionaria) prefeito Lunelli por investir 170 mil reais em livros do Gabriel para a rede pública, show e eleger o rapper, escritor e empresário de futebol, patrono da feira do livro de Bento Gonçalves, em detrimento de autores locais (imagino que em cima das premiações do autor e de sua campanha pela alfabetização infantil tenha passado o pensamento do político candidato a reeleição), pergunto: O que nos levou a chegar a este ponto? Obviamente não sei como autores conseguem descobrir o que é pago ou não pra outros. Já partcipei de algumas, poucas, mesas e debates na minha vida de autor eo que ganhei sempre foi um aperto de mãos e no máximo um custeio da viagem (duas vezes e as duas no Paraná), mas jamais imaginei descobrir o que os outros ganham. Aliás, nem me interessa.

Assim questiono a denúncia e revolta de Fabrício Carpinejar ao reclamar do cachê pago aos autores gaúchos contrariamente ao tratamento de estrela oferecido para Gabriel, o Pensador. No momento em que um autor se torna espetáculo, um homem-banda a se apresentar pelo país e pelo mundo, para pagar suas contas, que seja, mas se desviando do assunto principal, a literatura, em função de chamar a atenção para ele autor, seu estilo de vida, seus modos estudamente afetados e seu carisma pessoal como entrevistador-apresentador, não estaria o autor também alimentando o monstro que supostamente agora se revolta? Não seria, Carpinejar, de repensar o papel do autor-espetáculo no atual contexto literário nacional? Até onde ele auxilia na criação de um mercado leitor de ficção fragmentado e segmentado? Até onde o autor-espetáculo não se suicida ao incentivar os governos e patrocinadores a investirem no espetáculo do autor? Até quando para nos transformarmos em "artistas da fome"?

Se continuar assim não escreveremos mais livros. Faremos shows em teatros e nossos livros serão dados como brinde. O público, embevecido, nos amará (tem um público que o ama mesmo sem nem ler o que tu escreve, Carpinejar), mas até onde entra a literatura nessa porra toda?  É isso que devemos questionar, não somente os cachês pagos. Ou questionamos onde queremos chegar com a espetacularização da literatura ou então eu vou achar que tudo não passou de mais uma chama perdida na velha fogueira das vaidades que tanto mal já fez e ainda fará na literatura nacional. Resumindo, um chilique.

Guy Debord comemorando com amigos a vitória da "sociedade do espetáculo"

quinta-feira, 19 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 14


Capítulo 14

Geralmente Paulo marcaria o almoço em algum restaurante do Moinhos mesmo. Mas não era o caso. Eram espanhóis perdidos em Porto Alegre, capital do sangue e da carne crua. Nos dirigimos a uma destas churrascarias horrorosas com danças típicas e boi berrando no espeto de tão vivo. Eram estrangeiros querendo assistir nossos exóticos costumes, entre eles o da doida de ressaca que passa a mão nos peitos enquanto apresenta um projeto de marketing. Eu.

Chegamos antes e Paulo me entregou um cálice de conhaque no bar. Fiquei olhando pra ele. É bom pra digestão. me diz. Que conversa de velho, Cocó. E também pra matar ressaca. Que seja. Bebi. Queimou minha garganta mais que o mata rato do guarda do estacionamento. Como os espanhóis não chegavam, bebi mais uma taça. Desceu bem melhor. Cocó me olhou mais estranho ainda. Ou eu estava enxergando tudo mais estranho. Sei que como aqueles espanhóis desgraçados sendo que um deles era o meu Javier Bardem da hora, não chegavam nunca e eu já tava me coçando toda e com vontade de abrir ainda mais a camisa no peito, quando pedi mais um cálice do tal conhaque e fiquei pra lá Bagdad, na verdade, pra lá do Afeganistão. Eu tava na caverna do Osama. E sem papoula.

Os espanhóis chegaram e sentaram-se em uma mesa próxima ao palco de apresentação. Mal nos cumprimentamos e pedimos as bebidas, vinho tinto porque eles eram espanhóis negociantes mas longe de casa e queriam era mais aproveitar longe de suas respectivas e eu, euzinha, era o centro de atenções daqueles chauvinistas cafajestes e salafrários. O mais velho se chamava Carlo, e o Paulo insistia em chamá-lo de Carlitos. E cada vez que o chamava de Carlitos eu ria e bebia mais vinho. Nem queria saber daquele catatau de carnes sangrando. No matambre os espanhóis se perderam. O cara de bebê, que mais parecia um emo de férias, tinha um modo afetado de falar até para um castelhano, pediu três matambres um atrás do outro. Nem quero imaginar se alguma mulher, ou homem, ou até o velho, vão dormir com o babyface hoje de noite. Na verdade o velho, que nem é velho, tem seu charme. O Paulo é que esculhamba com toda a moral chamando ele de Carlitos. parece que são amigos de colégio. Dá uma impressão muito chata. Eu continuo falando e nem sei direito quais são os assuntos e se me entendem, pois apesar de arranhar num dialeto portenho, que não é espanhol, eles me compreendem, e riem sem parar. Menos o gostosão. Ele não é espanhol. É gaúcho. De Porto Alegre. Mora duas quadras da minha casa e jamais vi ele ali por perto. Eu trabalho muito, responde ele. Não bebe vinho. Só água com gás. Me observa mais que os outros. Eu sinto calor quando olho pra ele. Sabem calor? A gente olha para alguém e a temperatura sobe mais ou menos uns 15 graus Celsius. Imaginem então naquela churrascaria que mesmo com ar condicionado era um forno?

Os espanhóis pedem outro vinho. E outro. Eu explico, não sei como, as danças que aquela gente faz no palco. Chamo a chula de dança do pau e o Leonel, é o nome do gostoso, ri alto. Os espanhóis não entendem e ele não explica. Na verdade o negócio já está fechado. Paulo e o coroa vão se reunir depois do almoço na agência e assinar os papéis. Minha parte está feita. Léo, ele prefere ser chamado assim, me explica que é pra não se lembrar que o nome é uma homenagem ao Brizola, que ele não quer nem saber. Me fala de política. De economia. Ele poderia falar sobre fissão nuclear que eu acharia o melhor assunto do mundo assim mesmo. Continua falando, Léo. Eu quero dar pra ti. Eu vou te comer. Estico o braço com o cálice na mão. Mais vinho?


terça-feira, 17 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 13


Capítulo 13

Maquiagem refeita, ou feita, afinal eu tava um desastre que pior que Iraque depois da invasão com homens bomba espalhados pelo meu corpo prestes a explodir e me detonar de vez. Combino com Quico que, aconteça o que acontecer, os dois vão se divertir, afinal, é sexta, dia mundial do fiasco, e pior do que está não fica, não é? Fica. João ligou para avisar que não tinha chegado chaveiro nenhum. Sua voz começa a passar um tom de desespero. Sua mulher chegaria às três da tarde, a conexão atrasou o voô que fazia escala em São Paulo e ela demoraria um pouco mais. Desligo e tento encontrar o chaveiro. Não atende. Ligo de novo, uma mulher atende. O que? Mulher dele? Tá no hospital e quebrou a perna? Não pode! De todos os chaveiros de Porto Alegre tenho que chamar logo um que bate num táxi e quebra a perna?

Paulo me espera na sacada de sua sala. A sala originalmente não tinha sacada. Ele mandou fazer. Só para fumar. Me chama. Peço um cigarro dele. Desses lights. Paulo está na crise do cinqüentão. Fuma cigarro light. Caminha no fim da tarde no parque sem camisa. Separado, vai em bares à procura de idiotinhas incautas ou aproveitadoras cretinas. Ele não se importa. Resume tudo com um "fazer o que?" Paulo é assim. Fazer o que? Ele precisava de mim para fechar o negócio e aumentar consideravelmente o faturamento da agência. Pagar mais para suas duas ex e para suas três filhas. Sempre foi um cretino. Não seria agora que deixaria de ser. Muitas pessoas nunca deixam de ser. Eu jamais fui. Sou Marina e gosto de falar na cara.

Na cara eu falo logo que estou com problemas, fui assaltada, quebrei o salto, não consigo pegar meu carro e não falo que tenho um homem que não lembro quem é com quem certamente trepei depois da festa de ontem trancado no meu apartamento. Que o homem é casado e quer que eu vá buscar a mulher dele no aeroporto. Enfim, uma história muito comprida e confusa. Só a parte do assalto já o cansou. Ele acende o meu cigarro e pergunta se eu voltei a fumar. Sim. Não. Sim e não. Só hoje, respondo. Ele sorri. Se fecharmos este contrato tuas contas desse mês ficam por minha conta, responde Cocó, num acesso de bondade que jamais eu tinha visto. Ele sorri e eu me flagro passando a mão no peito de novo. Ele pisca o olho. Muito perspicaz, Marina. Muito mesmo. Assim tu conquista o mundo. Tarado.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 12


Capítulo 12

Paulo espera Marina em sua sala. Ela entra, sandálias da faxineira arrastando no chão. Marina, querida, o chefe a bajula mais que o normal. Ela sabe que ele sempre teve uma quedinha por ela, ou por comer ela, coisa que ela imagina, mas não tem certeza. Ele tem. Marina, recebi agora um telefonema de nossos clientes. Eles querem almoçar para acertar alguns detalhes mas eu acredito que querem fechar o negócio. Então, a tua presença é muito importante. Pode não parecer profissional, mas a tua apresentação foi tão envolvente que até eu mesmo me convenci que eles tem que ser nossos clientes. Não sei daonde tu tirou essa força de convencimento, nem quero saber, Paulo imagina, como todo homem sempre pensa, que Marina deve é estar sendo bem comida, afinal, na cabeça dos homens se passam pensamentos assim, do tipo, fulana está de mal hoje porque não trepou ou faz tempo que não trepa, ou seja, é mal amada. Marina não era mal amada. Marina não era nem amada. tinha casos esporádicos. Que soubesse ela nunca apareceu com um mesmo namorado em duas festas seguidas da agência. Marina é fogo, pensa Paulo. e continua, portanto, quero que tu saia comigo daqui a pouco para este almoço e continue no mesmo clima, entendeu?

Respiro. Caralho, porra! Calma. Não é uma boa hora pra se estressar. Não conta nada pra ele da história do João, do assalto, do carro, do sapato, do gostosão. O gostosão! Sim, Cocó, quer dizer, Paulo, claro que eu posso almoçar com os espanhóis. Será um prazer terminar minha explanação, afinal, se pegarmos essa conta, será nossa maior conta e imagino, não falo, imagino, que eu também ganhar um aumento, não é? Óbvio que ele não vai responder, me embromar, me encher de presentes e regalias, mas aumento, o de sempre. Aumento de trabalho que publicitário é um tipo de escravo do glamour, entendem? Não? Olha só, não tem dia, não tem noite, não tem hora extra. tem a loucura do chefe, a nóia dos clientes e o saco de aturar os terceirizados. Tudo é um caos. Como eu depois de uma garrafa de champanha. Talvez por isso eu beba. Não tenho namorado. Não tenho amor. Não tenho vida. Claro que sim, Paulo, vou retocar minha maquiagem e volto.

Retocar com o que, cretina? Não tem como retocar. Não tem pra quem pedir. Não tenho bolsa, não tenho nada. A bicha! A bicha do cafezinho. Quer dizer, eu sempre encontro no cafezinho. Ele nem trabalha aqui comigo, trabalha em outra sala. Mas é uma bicha amiga do atendimento. Amo ele. Todas mulheres amam bichas amigas. Amar mulher amiga é outra coisa. Mulher é mulher mas sempre pode te trair. Bicha também pode. Mas não é mulher. Pode tentar pensar como uma. Uma mulher pode pensar como bicha. Mas pensar como mulher? Nem o narrador quando tenta se passar por mim, esse machista de merda. E nem tenta interferir agora, babaca. Sou eu e o Quico, minha bicha. Sim, todas nós temos uma vez na vida uma bicha. Hoje o Quico é a minha. Quico não está no café. O procuro na sala. Está saindo do banheiro, os olhos fundos, como se tivessem sido enxugados depois de uma choradeira de súbito.

Que foi Quico? Não foi nada, não. Eu ainda meio nervoso, o Lucas, o namorado do Quico, agora ex, como ele vai me explicar, me largou. Assim, sem mais. Nem menos. E eu fico parado pensando e não lembro o que posso ter feito para que ele terminasse comigo. Terminou porque homens idiotas terminam por nada, Quico. E falava assim, como se Quico fosse a mulher e Lucas, o homem. Talvez fossem. Como ela disse, eu não entendo nada. Marina pega em suas mãos e pede que ele leve sua bolsa junto. Quico não tem problemas em carregar uma enorme bolsa. Não é uma bicha-mulher, quer dizer, se veste de mulher. É apenas um pouco mais espalhafatoso que o normal e adora uma maquiagem. Aquela coisa Boy George, menina-homem, sabem? Pois levei a bolsa e disse. Quico, eu horrível e tenho uma reunião mega-super-importantíssima, então, olha aqui, tu me ajeita a cara agora e me deixa "a" mulher que eu tenho que destruir corações e arrebanhar bolas sob meu domínio. Ele entendeu o recado. Quico sabe tudo, ele até ajuda na maquiagem quando pinta uma sessão de fotos. E, além do mais, é minha única, único, amiga que carrega junto o estojo de maquiagens. Com demaquilante, claro. Imperdoável não ter um demaquilante. Fico o óbvio maquiada sem parecer. Alguém para o gostosão chamar de seu. Esquece. Capaz dele gostar do Quico. É tão bom que deve ser gay. Os melhores homens são todos gays.