quinta-feira, 29 de março de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 9

Capítulo 9

Existe um chaveiro em Porto Alegre que aparece nas horas e momentos mais inesperados. Muitas vezes as pessoas nem estão precisando de um chaveiro. Mas sabem que perderam algo. Uma foto antiga. Um recado. Namorado. Emprego. O nome do chaveiro é Raul, mas poderia ser Carlos. Ninguém sabe ao certo.

Uma senhora de pouco mais de sessenta anos ficou viúva de repente. Um derrame levou seu velho, como ela chamava. O chaveiro tocou a campainha e a levou para um bar. Naquele bar tinha uma mesa. Era a mesa onde o marido sentava quando estava triste e saía para tomar um uísque sozinho. Ela sentou-se na cadeira que ele sentava e pediu um uísque para ela e uma cachaça para o chaveiro. Onde dizem que o chaveiro de todas as portas, assim também chamam ele, bebe cachaça. Outros, que fuma maconha. Ninguém sabe ao certo. Ele bebe da cachaça e a viúva chora. Chora e o abraça. Depois desse dia a viúva nunca mais chorou.

Um homem de quarenta e poucos anos perdeu o emprego e o chaveiro se encontrou com ele na parada. Estendeu um baseado e os dois fumaram enquanto esperavam o ônibus. O desempregado não sabia como chegar em casa e dizer para os filhos e a mulher que certamente não arranjaria outro trabalho como aquele. Seus olhos lacrimejavam e ele apertava as mãos e fumava cada vez mais profundamente. Um cavalo passou em disparada e ele acalmou o cavalo. O cavalo lambeu sua cabeça já calva e o rosto por barbear. Ele então compreendeu que o cavalo queria ser montado. Montou. O chaveiro deu uma última tragada no fumo e acenou para o desempregado. Deste dia em diante ele nunca mais procurou emprego.

Uma garota desesperada por levar o fora do namorado que a tinha traído com a melhor amiga, clichê que sempre se repete na vida real, caminhava de pés descalços na ponte que atravessa o Guaíba. Certamente planejava se atirar nas águas escuras do estuário. Ou lago. Ou rio. Não sabendo nem a definição das águas em que ia se matar, a garota caminhava firme para o abate quando o chaveiro apareceu. Ele veio de moto. Era uma moto dessas tipo vespa, muito da escrotinha, e o chaveiro foi guiando ela vagarosamente ao lado da garota que caminhava agora em cima da amurada. Ele estendeu a mão e ela caminhou de mãos dadas. Dizem que ela montou na garupa da moto e se foi embora com o chaveiro. Numa moto tipo vespa. E nunca mais foram vistos. Tal como num clichê de filme mulherzinha.

O chaveiro que Marina tinha chamado não achava o endereço. Foi fazer um retorno proibido e deu em cheio em um táxi que vinha procurando um número na rua. Caiu no chão e machucou o joelho. O taxista pensou em chamar os outros, mas um brigadiano que passava, nessas horas eles sempre passam, se adonou da situação e chamou a ambulância do Pronto-Socorro. Marina não saberia o que aconteceu ao chaveiro. A porta de apartamento parecia condenada a se fechar para sempre. Com seus pertences, segredos e um João ninguém que era casado.

terça-feira, 27 de março de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 8

Capítulo 8

Sim, o apartamento é meu e meu marido está preso lá dentro. Não, não posso ir lá agora. Se eu pudesse não ia perder meu tempo ligando, não é? Caralho, será o que que tem tanta gente lenta no mundo? Depois eu que sou doida varrida. Que bebo. Que dou pro primeiro que aparece depois de algumas champanhas. Sim. É uma rua depois da Eudoro. Eudoro, animal, aquela que corta o caminho pra quem não quer ficar preso no trânsito da Goethe. Goethe. O jovem Werther não deveria pegar a Goethe se morasse em Porto Alegre. Ia ficar se lamentando e mandando emails pra Carlota e se matar depois que a rede wi-fi falhasse em meio a uma mensagem importantíssima. Não que eu nunca tenha me apaixonado assim. Me apaixonei. Mas eu tinha 14 anos e ele era um baixista de uma banda de colégio.

O problema é que ele, o baixista de banda de colégio, cantava numa cover que eu achava linda mas hoje odeio, a cover e a original de Hey Jude e ele era o Paul cantando pra mim. Ele me levou pro show que teve no parque, show de graça, coisa de banda de colégio mesmo, e depois me beijou e me deu uns amassos perto de umas árvores. Depois disso nunca mais deu as caras. Descobri, muitas semanas depois, que o pai dele trabalhava de funcionário público e tinha se transferido pra Goiás. Imagina meu desespero, minha primeira paixão, meu Paul, indo pra Goiás tocar música sertaneja? Mentira, ele desistiu da próspera, mentira, carreira de músico e pelo que sei é despachante no Mato Grosso, barrigudo e tem a pele cheia de feridas, porque todo mundo que a gente se apaixona e nos abandona tem a pele cheia de ferida e fede que nem cachorro de rua, isso sim.

Eu nem tentei me matar na verdade. Pensei em me cortar com a faca mas achei que ia ter muito sangue e odeio sujeirada de sangue. Depois pensei em me enforcar mas dizem que enforcado se caga todo quando morre e eu não queria morrer cagada. Se jogar na frente do T2 lotado? Não. Vai que não dá certo e eu ficava entrevada o resto da vida. Se jogar do prédio poderia ser mais fácil. Só que eu ficaria toda espatifada no meio da rua e não queria um povo me vendo. Tem gente que se joga na frente do trem, mas é muito suburbano e de suburbana chega minha infância no Navegantes. Depois de um tempo matutando e uma carteira que eu fumei escondida, ou dez maços como naquela música, e enfiei na cabeça que ele tinha morrido, o baixista que nem lembro mais o nome. Afinal, pra uma garota de catorze anos de Porto Alegre ver a paixonite viajar pra Goiás é o mesmo que morrer não acham?

Neste parágrafo o advogado do narrador entra em cena com uma medida preventiva para garantir que as palavras pejorativas quanto ao estado de Goiás foram proferidas pela personagem que, não sabemos se fictícia ou não, deve arcar com os custos de seu preconceito adolescente, sendo assim, inexpugnável.


quinta-feira, 22 de março de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 7

Capítulo 7

Os sites de busca são péssimos quando se procura um chaveiro. Um ímã de geladeira muitas vezes é dez vezes mais eficiente que um Google da vida. Tivesse uma pá de ímãs em uma geladeira e tudo estaria resolvido. Não que eu não pudesse pedir ajuda pra alguém, mas é que não quero escancarar minha mendicância emocional admitindo que tenho um homem que nem sei quem é trancado dentro do meu apartamento. Quando consigo enfim encontrar um site que me indique chaveiros das redondezas, o celular toca. Love, love me do. You know i love you ... Juro que troco a bosta deste toque quando tiver tempo.

Que é? Não vi que eu liguei? O que? Tua o que? Ele é casado. Casado e tava aproveitando uma viagem da mulher pra dar uma escapadinha. A escapadinha sou eu. Não precisava saber disso, não é? Precisava? Pronto, agora que a autoestima foi pra banha. Uns três quilos nas próximas semanas, no mínimo. E o canalha ainda admite. O que? Ela deve tá chegando daqui a pouco no aeroporto? E eu com isso, idiota? Mas tu é animal, João não sei de que? Perdeu uma reunião e daí? Eu tô perdendo minha vida, seu cachorro. Como se eu já não me tivesse me metido com um tipinho desses. Casado. Safado.

Era o Cirne, olha os tipinhos com quem eu me meto. Cirne! Isso lá é homem de se arranjar. Mas quer saber, ele me tratava bem, não incomodava e não ligava o tempo todo. Era quase perfeito. Um pau. Noitadas a dois. Sem me encher. Até dava minhas voltas quando ele esquecia de mim. Era um caso quase namoro. Quando estávamos juntos, não existiam outros. Pelo menos pra mim. Eu não tinha. Tinha o que toda mulher tem. Casos esporádicos que aparecem e temos que aproveitar, não é? Não pensem que eu sou uma promíscua. Não. Só que trepar é bom, porra. Eu ainda prefiro pau. Tudo bem que dizem que toda mulher é uma lésbica em potencial. Já dei minhas bitocas por aí. Bêbada. Boa desculpa. Mas não é a mesma coisa. Quero homem. Com cheiro de homem. Limpo, claro. De preferência que seja machista na carteira e feminista no resto. O Cirne era assim. Tinha sua careca, mas quem disse que não é bom uma carequinha pra passar a mão. Bagaceira!

Só que o Cirne tinha mulher. E dois filhos, o cachorro. Até mesmo um cachorro tinha o cachorro. O nome dele era Sasha. E eu dando prum animal destes. Um dia ela, a mulher, a tal corna, descobriu. Eu era o casinho dele. Eu não era casinho de ninguém. Nem queria ser. Mas só que ela descobriu e veio tirar satisfação comigo. Na frente do meu prédio. Fui fazer uma caminhada no Parcão e a potranca apareceu. Não me assusta ele cornear aquela égua prenha. Não que eu seja uma beleza universal, mas eu tenho tudo no lugar. Agora aquela infeliz? Já veio pra cima cheia de dedos na cara e querendo partir pra bofetada. Mas antes que ela chegasse às vias de fato, tasquei-lhe um tapa com as costas na mão. Isso eu sabia desde o colégio. Aprendizado de irmã mais nova. Meu irmão brigava e eu assistia, tinha que voltar junto com ele pra casa. E desde aquela época guardei que um tapa com as costas da mão praticamente encerra o assunto. Quando ela sentiu o golpe, xingou, colocou a mão no rosto e voltou pro Classe A de mulher mal casada dela. Ainda me ameaçou um tempo de processo, mas o Cirne, se desculpando muito, disse que não ia ter nenhum processo. Ele ainda tentou trepar comigo mais uma vez, o panaca. Me deu brincos e tudo. Aceitei. Mas não dei. Devolver, jamais.

João estava realmente preocupado do outro lado. Eu era o que tinha que se livrar, era óbvio. Mas tinha que me tratar bem para resolver seu problema. Queria que eu desse um jeito de receber ela no aeroporto, parece que o voo chegava às duas da tarde, e já estava mais que na cara que não teríamos tempo de achar um chaveiro que abrisse a porta pra ele. Ainda mais agora que ele me liga na hora que consigo achar um número disponível. João desliga. Prometo pensar no caso dele. O chaveiro atende.


terça-feira, 20 de março de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 6

Capítulo 6

Marina chega à empresa, iluminada, a luz voltou, a internet funcionando, a civilização tomando sua roda de volta, pés no chão, pretos de sujo, e se dirige à mesa. Antes de pensar em qualquer coisa, abre uma gaveta e retira um pacote de lenços umedecidos e limpa os pés. Do jeito que é sujo esse carpete nem sei se vale a pena. Odeio carpete. Coisa de pobre, o Cocó deve ter algum passado obscuro de classe média recalcada. Tira esse carpete pelamordedeus. Marina mexe o mouse e sai à cata de um chaveiro na internet. Enquanto isso telefona para casa. Quer dizer, para o telefone de João, o desconhecido. Telefone ela não tem casa. Mas ele não atende. Como assim, não atende? Em casa, trancadão. Faz o que? Toma banho? Se masturba? Se exibe nu na janela? Olha meus álbuns de férias, aqueles que tirei com ex e um ou outro casinho de verão? Será? Será um desses psicopatas?

Uma vez tive um namorado psicótico. Ou psicopata. Ou sociopata. Não sei. Sei que depois de duas vezes que saímos e uma trepada ele me ligava no dia seguinte. Não que eu reclame de homens que liguem no outro dia. Na verdade é tão estranho que desconfio. Quando a gente liga no outro dia é porque certamente fizemos merda. Homem é tão bocó. Mulher faz merda e liga antes! Liga antes pra dizer que tá tudo bem, ou tudo mal, mas tem que trabalhar até tarde, aquele chefe que nos suga, aquela dor de cabeça que não se vai, aqueles dias, TPM, o inferno. Homem, não. Homem vai fazendo a bobagem e postergando. Embroma. Deixa que a pergunta venha antes da resposta. Nós mulheres damos a resposta sem que exista a pergunta. É tão fácil. Eles são tão sugestionáveis. Mas aquele serial killer em potencial, não. Ele ligava no dia seguinte.

Aliás, ele ligava no dia anterior também. Ele ligava para saber como eu estava. Para dizer onde ele tinha ido. Como gostava de mim. Dar detalhes de nosso próximo encontro. Ou não. Fazer surpresas. No começo eu amei. Quem não amaria? Ele era carinhoso, era bom de cama, nem grande, nem pequeno, mas na largura certa. Nem muito alto para ser mangolão e nem muito baixo para ser anão. Nem desgrenhado, nem barbudo e nem babyface. Era o comum básico de toda mulher de trinta e poucos anos. Sem essa de Balzac que nunca fui de ler essas coisas. Claro que li minhas Júlias quando era adolescente, mas prefiro as malvadonas. Prefiro as mulheres de faca na bota como dizem por aqui. E eu adoro botas.

Pois o tal Fábio era assim. Um querido. No começo. O tempo foi passando e os telefonemas foram sendo cada vez mais freqüentes. Eu respirava, ele ligava. Depois veio o MSN, na época era ICQ, eu acho. Os emails. As mensagens de celular. Onde está? O que vamos fazer hoje? Eu te amo. Te adoro. Tu é a mulher da minha vida. Não existe nada pior que homem que bajula demais. Tem mulher que gosta. Mas tem mulher que gosta de homem e de cachorro. E que o homem seja tipo um cachorro. Um pau mandado. Eu não. Eu gosto do pau, mas mandado demais dá muito trabalho. E Fábio implorava para ser meu cachorro. Tomava meu tempo. Queria que eu levasse ele pra passear. Pra fazer xixi nas árvores. Limpar a bunda. Levar no veterinário. Dar banho. Quando eu já estava infestada de pulgas, larguei. Não atendi mais celular, não respondi mais mensagens. Tive que mudar meu número de telefone, meu email de trabalho, quase tive que mudar de emprego. Até que um dia ele veio no meu trabalho e fez cena. Tivemos que chamar a Brigada Militar. O juizado mandou que ele ficasse mais de meio quilômetro de distâncias dos locais que eu freqüento. Ele cumpriu uma pena alternativa cuidando de velhos de asilos. Se apegou aos velhos. Fez um curso de auxiliar de enfermagem e até onde eu saiba trabalha ainda lá no asilo. Quando um morre, ele se desespera. Dói. Daí que começou a freqüentar centros espíritas. Para não perder contato com seus velhos. Mas isso é outra história. Pelo menos Marina está livre dele.

Mas não está livre do João peludo em sua casa. Ele não atende o celular. Ela tenta mais uma vez e fica com medo que ele não tenha nada para carregar o aparelho, nem sabe se é o mesmo que ela usa e se ele vai achar o cabo de recarregar pois ela sempre esquece dentro de uma bolsa e se estava na que ela estava usando hoje antes de ser assaltada, já era. Então desiste. Melhor esperar. Melhor que ele se ligue e me ligue. Idiota.

quinta-feira, 15 de março de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 5

Capítulo 5

Dizem que o nome Moinhos de Vento vem de moinhos de vento que existiam lá por aquelas alturas. Moinhos de uma época que eram usados para, claro, moer. Moer grãos que vinham das insípidas fazendas da província ou importadas de outros lugares. Depois o bairro foi dominado por grandes casas e prédios de portas largas e pé direito alto. Hoje em dia é um bairro que seus freqüentadores julgam ser uma Recoleta porto-alegrense, embasbacados que são seus habitantes com a nem tão próxima Buenos Aires.

Em um destas antigas casas, dizem, mal assombrada, vivia uma velha doceira que costumava fazer doces pra fora como se fazia antigamente. As pessoas encomendavam e ela entregava na porta de suas casas. Ainda existem doceiras assim em Porto Alegre. Não é tão incomum quanto parece. Mas aquela doceira era. Seu nome era Manuela. Dona Manuela, como era chamada. Sempre foi solteira. Diziam que era bruxa. Outros, que era filha de um coronel da época da Revolução de 93. O certo mesmo é que ela tinha um costume muito estranho que todos conheciam mas ninguém comentava com ela.

Nos dias de temporais violentos, pouco antes deles chegarem, quando o céu de Porto Alegre se revoltava em nuvens pesadas e baixas e chovia intensamente, lateralmente, por cima, por baixo, quando parecia que os céus queriam destroçar a cidade, ainda mais nos altos dos Moinhos de Vento, a já velha, e parecia que era velha décadas a fio, saía de casa com uma cesta de doces em meio à ventania e os jogava para o cima e para os lados. Os vizinhos observavam atônitos, mas nada falavam. Temiam que um quebranto caísse sobre suas cabeças. Ela berrava palavras ininteligíveis e levantava os braços para as nuvens. Os doces jamais eram tirados dos locais onde caíam. Se um cachorro, uma criança ou mendigo juntasse e comesse, certamente passaria mal. E passavam mesmo.

A doceira morreu um dia em que de tanto levantar os braços, um raio a atingiu em cheio. Os doces torrados esparramados pela calçada e a velha caída no chão. Depois desse dia, a casa foi vendida por um primo distante, único herdeiro que a justiça encontrou, e depois destruída. Desde então a lenda que ela assombra os Moinhos de Vento em dias de temporal se propaga. E muitos julgam ter visto o fantasma da doceira. O estacionamento onde Everaldo trabalha fica exatamente no mesmo espaço da casa de Dona Manuela. Ele faz que não viu, mas jura ter visto a doceira levantando os braços e jogando doces para a chuva na hora do temporal. Quem sabe a velha está ali, agora, ao lado de Marina, juntando os doces que ninguém quis para fazer sabe-se lá o que. Marina não se importa. Ela não acredita em bruxedos. A não ser naqueles que estão envoltos em garrafas de champanha.

segunda-feira, 12 de março de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 4

Capítulo 4

Chega toda torta ao estacionamento, ainda tentando pateticamente, como fazem quase todas as mulheres acostumadas a andarem de salto, andar com o do salto quebrado mais alto para compensar a altura do salto bom. Na portaria do estacionamento o funcionário a observa atento, talvez também porque no andar a bunda rebole de um modo diferente. Marina nota. Que que é? Mas quando vai buscar o que seria a bolsa se conta que tem um celular na mão. Por acaso tu não tem um tipo de chave mestra para abrir carro, não é? Não. Claro que não. Teu carro se fecha pelo alarme e a chave e o alarme reservas estão trancados em casa junto com o tal João. Inclusive a tua chave de casa está na bolsa. Teus cartões de crédito, teus trocados que tu usa para comprar cigarro quando fica nervosa e volta a fumar, teu lubrificante. Ai, que ódio, meu lubrificante. Ela fica vermelha na frente do funcionário do estacionamento que se chama Everaldo e mora em Alvorada.

Everaldo sai todos os dias de casa e pega dois ônibus para chegar ao trabalho. Ele gosta de seu trabalho. Carro de madame, de gente fresca como ele mesmo diz, e que muitas vezes deixam assim na hora de pagar, quando não pagam na maquininha do cartão. Chega em casa nove da noite e assiste à novela junto com a mulher, Silvana, que trabalha de faxineira em um condomínio no Menino Deus. Seus dois filhos estudam num colégio público estadual, nem bom, nem ruim, igual aos outros, de mediano para medíocre. Quase nunca acontece algo fora da rotina. Quando acontece é coisa do tipo essa madame aí, caminhando capenga e esquisita e que, vamos ser sinceros, tem uma bunda razoável, nada melhor que a minha nega, claro, que tem um super bundão e eu gosto é de bunda grande. Mas que essa capengada deixou a madama mais gostosa, isso deixou. Ele sorri e responde. Não senhora. Não tem como abrir o carro e nós não abrimos carros. A senhora tem que chamar um chaveiro ou tentar com a chave reserva.

Marina pulos de ódio e finalmente consegue se equilibrar. Quebrou o outro salto. Ela pede uma cadeira para se sentar. Everaldo traz uma cadeira daquelas de guarda de rua. Aquelas que alguém deu antes que o caminhão do Mensageiro da Caridade levasse embora. Tirou um sapato. Depois o outro e ficou com as pernas dobradas pra dentro, os pés se tocando, encurvada, pensando no que fazer. Tem um cigarro? Claro que tem. Todo guarda, segurança, o que seja, sempre tem um. A marca era daqueles mata-ratos com embalagens horríveis mas a propaganda anti-fumo atrás era do "Ministério da Saúde adverte: fumar pode causar pau mole." Não era isso, mas era o que Marina desejava. Que o desgraçado do peludo infeliz que ela nem se lembrava como era broxasse pelo resto de sua vida de aproveitador de mulheres com amnésia de champanha. Deu duas tossidas e tragou mais forte o mata, quer dizer, o cigarro de Everaldo. Se levantou, pegou os dois sapatos e entregou para ele. Por favor, joga estas porcarias no lixo? Obrigada. E me mais um desses? Ainda tenho que encarar o chefe.


quinta-feira, 8 de março de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 3

Capítulo 3

Marina desce os quatro andares pela escada. O elevador também tinha caído com a rede toda. O prédio todo. A rua toda. O bairro. A cidade. O Império Romano. Porto Alegre ventava de um lado para o outro em uma penumbra de nuvem e pingos grossos sem nenhuma noção de direção. Marina segurava o celular em uma das mãos enquanto levava a bolsa na outra pendurada no ombro. O carro estava ali perto em um estacionamento fechado. Duas quadras só. Pessoas correndo apressadas pelo Moinhos de Vento, nome apropriado para um bairro nesse dia. Quem sabe se não eram o ventos que sobravam dos tais moinhos a derrubar galhos, luzes e reputações pela cidade? Moinhos do passado assombrando o dia de uma louca publicitária com amnésia alcoólica. Acelerou o passo e entrou na rua onde ficava o estacionamento. Detrás de uma árvore saltou não um galho, mas um guri de uns dezesseis anos. Sacou de uma faca e encostou nas costelas de Marina. Fica quieta e deixa a bolsa, madame. Fica quieta. quero tua bolsa, safada. Marina não teve nem tempo de reagir. Quando tentou segurar a bolsa, levou uma botinada na canela e caiu no chão, o celular na mão. O guri deu uma última olhada na cara dela e ainda teve tempo de dizer. E tu nem viu nada, madame. Se falar da minha cara eu te cato, viu? Eu te cato, sua safada!

Marina pensou no que tinha na bolsa, sem nem se dar conta do perigo que tinha passado. Um segurança de um café ali por perto se aproximou e perguntou se estava tudo bem. Tudo bem? Onde que tu tava enfiado quando o guri me roubou, porra? Marina não falou. Ele a ajudou a se levantar. Perguntou se ela queria se sentar e tomar uma água. Ela aceitou a ajuda, mesmo puta da cara por ter sido assaltada em plena luz, quer dizer, escuridão do dia em Porto Alegre, e foi cambaleando de braços dados com o segurança. Ele a colocou em uma cadeira do café e lhe trouxe um copo de água. Estava suando, as mãos tremiam e pensou que fosse desmaiar ali mesmo. A dona do café que a conhecia de vista foi conversar com ela.

Tu como anda nossa cidade? Aqui na nossa rua, falava a dona do café que se chamava Amália. Amália? Marina pensava mais no nome da dona do café que no que ela estava falando. Essa cidade muito insegura. Outro dia foi uma senhora de idade, me chamando de velha, cachorra? Foi uma senhora de idade que assaltaram por aqui e levaram toda a aposentadoria da coitada. Sim, a aposentadoria. De mim não tem mais nada pra levar. A dignidade, o dinheiro, a virgindade foi um namorado que tive aos 14 anos e me comeu na casa dele enquanto os pais assistiam novela na televisão. Foi rápido, sem graça e hoje em dia ele é um gordo horroroso de tetas caídas. Que nojo, cuspo a água. Tem uma abelha no fundo do copo. Ainda sai zunindo a infeliz. Amália me traz outro copo, mas recuso. Tenho pressa. Mas tu não quer ir na polícia? Como era a cara dele? Vai saber como era? Não lembra. Usava cabelo repartido ao meio como se fosse um moicano sujo. Como daquele jogador argentino. Não. Não sei o nome. Odeio futebol. Quer saber? Vou embora. Depois eu descubro como me defender. Marina se levanta e vai tentando caminhar, a perna ainda bamba e dobrando pra direita. Coloca o no paralelepípedo da rua e quebra o salto. Puta merda! Caralhooooô!