sexta-feira, 27 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 16


Capítulo 16

Ele tem um carro pequeno, novo, mas um carro de gente normal, quer dizer, como eu, se é que sou normal, e enquanto ligo de volta e fumo pela janela do carro aberta, faz tanto tempo que não faço isso que meu coração chega a disparar, que quase esqueço o nome e a lata da traída. Susana, nome de corna, com certeza, paramos em uma papelaria no caminho para comprar uma cartolina e um pincel atômico. Léo me contou que faz pouco trabalha com os espanhóis. Pegaram ele porque era um jornalista frila sobrando no mercado e tinha boas recomendações, leia-se foi demitido ou se demitiu de algum lugar por bater de frente em alguém maior mas é respeitado pelos colegas. Teve que partir para área frontalmente publicitária do jornalismo. A assessoria de imprensa. No caso dele envolvia tudo, inclusive marketing. Mas ele preferia voltar para a imprensa formal. Não podia mais. Escrevia em um blog o que lhe interessava. Sem nenhum interesse imediato. Repito o que ele diz como quem entoa um poema em meio a uma canção. Não que entoar não seja chato. É, mas é o meu poema e a minha canção, então não é.

O aeroporto estava começando a encher o normal para uma sexta-feira ainda mais com atrasos provocado pela chuva e pela neblina intermitente que domina Porto Alegre boa parte do ano. Não demorou muito para que aparecesse o voô de Susana no painel e nos dirigíssemos os dois, eu e Léo, como dois esquisitos para receber uma pessoa que não sabíamos e nem tínhamos nem a mínima idéia de quem era. João tinha deixado o campo aberto. Nós éramos de uma empresa de eventos que ele contratara por telefone para receber ela no aeroporto porque no momento ele estava impossibilitado por questões de trabalho, questões que nenhuma mulher reclamaria, ou fingiria que não se importa, pois trabalho é trabalho, não é?

Não foi difícil enxergar quem era a tal Susana. Loira, o tipo de loira com quem um sujeito covarde casaria. Bonita, porém totalmente fútil. Veio direto ao nosso encontro, largou despretensiosamente as malas para Léo e nem olhou para a minha cara dando um boa tarde formal e sorrindo um sorriso de propaganda de creme dental. Falsa até os ossos, se descobrissem ela no deserto, certo que era um fóssil de plástico. Totalmente falsa. Aposto que até a raiz dos pentelhos, se é que ela não raspa tudo, essa nova moda de americanizar e achar que tudo é um filme pornô soft da Playboy.

No caminho acendi o cigarro e ela pediu para apagar. Onde já se viu fumar num carro, me deu uma mijada, engoli em seco. Léo ainda puxou assunto perguntando se era bom morar onde ela morava, Petrópolis. Ela respondeu que fazia pouco tempo que moravam ali, ela preferia um condomínio na zona sul, mas o João não queria ficar longe dos amigos de infância, leia-se a comunidade e os contatos, e ficaram por ali, quem sabe um dia, quando tivessem filhos não seria melhor um lugar retirado longe da violência, das drogas e toda aquela balela neurótica de loira de farmácia que assiste muito o jornal matutino e acredita em tudo o que falam. Quando paramos em frente ao prédio, Léo desceu e carregou as malas até a portaria. O porteiro veio ajudá-la. Eu fiquei no carro. Acendi meu cigarro que ainda segurava na mão direita e dei uma bela tragada fitando a idiota nos olhos. Ela fez que não viu. Puxou da bolsa uma nota de vinte reais e quando Léo se negava a aceitar, eu peguei. Agradeci. Ela sorriu de volta. Ele me olhou me condenando e eu pisquei o olho. Nada como cornear uma imbecil e ainda ganhar troco por isso. Boa sorte, pensei. Dei o braço esquerdo para Léo e voltamos para o carro. O dia estava ficando escuro de novo mas para mim parecia o mais belo amanhecer frio de primavera de Porto Alegre. Odeio imbecis, mas odeio ainda mais quando o imbecil é uma loira falsa. Morra.

terça-feira, 24 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 15


Capítulo 15

Paulo pediu um café e eu não aceitei. Café? Nem dirigir eu posso. Léo pediu o dele sem açúcar. Adoro homens que pedem sem açúcar. Nem me perguntem o porquê. Odeio essa coisa de açúcar. Nem quero saber de falar em chocolate. Sim, todas as mulheres amam chocolate. Eu não. Eu não amo nada com açúcar. Isso daí é coisa de mulher fraca. Sem auto-estima. Eu sou ariana, de primeiro de abril, mas sou o máximo. Ainda mais com uma garrafa de tinto na cabeça.

O celular toca depois de décadas. Eu nem lembrava mais do idiota trancado na minha casa e a conversa da corna que tava chegando no aeroporto. Paulo iria com o baby e o velho para a agência e Léo estava liberado. Quer dizer, eu estava liberando ele. João, quase sem fôlego, me falava que tinha feito uma massa dessas instantâneas, era minha única comida na dispensa, e a mulher dele tinha ligado antes de embarcar em São Paulo. Ele inventou uma história mirabolante que mandaria alguém buscá-la pois no momentos estava preso em algo importante no trabalho. O idiota trabalha como arquiteto, daí que me lembro que a festa de ontem era o lançamento de um condomínio horizontal na Zona Sul e este panaca era um dos responsáveis pelo projeto, João não sei das quantas, um desses sobrenomes polacos de judeu que nunca consigo pronunciar. Não era feio. Mas também não era um espanhol, quer dizer, o meu falso espanhol, então nem dava pra comparar. Tomara que eu não tenho chupado o imbecil. Aliás, nem quero saber. Não quero lembrar. Já lembrei demais.

O nome da corna é Susana. Mas chama ela de Susie. E eu com isso? Não queria nem olhar pra fulana. Léo não pode deixar de escutar a conversa. Paulo está preocupado em pagar a conta e os outros não entendem nada do que eu falo. Ele sorri sem chamar a atenção e depois que termina o café pega na minha mão, aliás, pega na minha mão, que coisa, ele pega mesmo, e eu acho que vou cair pra trás, e diz que entende o que está acontecendo. Eu tento me explicar e dizer que não é nada demais e ele responde. Tu vai buscar a mulher do cara com quem tu dormiu no aeroporto. Paulo para de conversar e presta atenção no que Léo fala. Depois faz de conta que não ouviu nada e paga a conta. Os espanhóis agora também entendem algo. Paulo se levanta e se oferece para dar carona pra eles. Fico sozinha com Léo. Eu vou contigo, me diz ele. Fica mais verossímil. Não sei se agradeço ou desconfio. Mas ele pisca os dois olhos ao mesmo tempo e me pergunta se eu fumo. Estou apaixonada.


ARTISTAS DA FOME

O escritor, ou autor, como queiram, é na maioria das vezes um sujeitinho comum, trabalha em outras áreas para seu sustento, em nada vivendo o glamour que os leitores muitas vezes imaginam ser a vida de um escritor. Nos últimos anos tem decrescido o número de leituras de livros impressos per capita no Brasil. Muitas influências nestes dados, e tem gente em muitos blogues e jornais que já escreveu melhor sobre o assunto (procurem no Google, diria Paulo Francis se vivo fosse), o que leva a uma estratégia dúbia para chamar novos leitores para a ficção nacional. A espetacularização do autor.

Não que que o autor-artista-stand up seja alguma novidade no mundo. Muitos no passado se valeram de cachês para servirem de "micos de circo" paraa um público muito mais interessado em ver o autor que escutar o que ele tem a dizer. Na maioria das vezes o autor não tem nada a dizer. Ele já escreve pra isso. Quer entender o autor? Leia o que ele escreveu. Mário Quintana, já octagenário, era visitado a todo instante e, impassível, reprimia: As pessoas chegam aqui e param na minha frente pra me observar. Eram outros tempos. Talvez hoje em dia cobrassem ingresso para observá-lo como faziam nos circos de antigamente, como num conto de Kafka, "Um Artista da Fome".

No atual estágio da educação no Brasil é urgente ultrapassarmos as barreiras da demagogia governamental. Se o analfabetismo se esvai pelos ralos da história, a ignorância ainda impera. O brasileiro não lê. Não tem o costume de ler. A cultura televisiva atropelou todos os processos antes que o Brasil atingisse a maturidade em matéria de leitores. O que temos hoje são algumas dezenas de autores nacionais, localizados em nichos, como o infantil no caso do Gabriel, o Pensador, e outros lançados por celebridades de outras áreas que se fazem best-sellers muito mais por serem quem são do que pelo que escrevem, Jô Soares, Chico Buarque, entre outros. Não vamos ser bobos e achar que o livro de um Jô ou de um Buarque tivesse a mesma repercussão se fosse assinados pelo Pedro da Silva ou pelo  Cláudio Simplório. Até poderiam, mas não acredito.

O autor comum, eu, tu, qualquer um que queira se aventurar pelo mercado literário, é um ninguém sem passado. Veio do nada e o nada é seu destino. Eu, queira ou não, como autor me considero não um "autor de internet" mas alguém que se utilizou do meio para divulgar seus textos. Por e-mail, blogue, até mesmo Orkut, para atingir um público que, enfurnado em meu meio-ambiente, a vida boêmia incrustrada no meio rocker porto-Alegrense, não atingiria. Mas a internet tem um limite. E também é uma armadilha. Aumenta a possibilidade para os que não ultrapassam as barreiras de seus próprios grupelhos, meu caso, mas também democratiza essas possibilidades. A disputa de interesses se altera em parte, e se ajusta com o tempo, onde o antigo QI (quem indica) é alterado pela busca dos leitores por conhecer novos textos e autores. Um mercado onde o leitor procura o autor, não um mercado onde a editora indica o autor a ser lido, através de pesquisas ou por pura preguiça administrativa.

Mas o autor nesse processo se perdeu. A multiplicidade de ofertas fez com que o mercado, como sempre as vanguardas são sugadas pelo mercado, não sejamos ingênuos, recolhesse da quantidade sua colheita de "escolhidos", fazendo uma mescla de novos autores com sub-celebridades ou popstars, Gabriel, o Pensador, queiram, ou não, é um, que se adentraram na feia e bolorenta literatura. Um novo caminho foi se desenhando, os autores que perscrutavam essa nova oferta de leitores, tiveram que se aventurar em palestras, ministrar cursos, oficinas, criarem projetos em conjunto com músicos, roteitos de cinema, se atirar nas verbas de incentivo público, cada vez mais escasso e elitista, dos governos, e, no fim de tudo, ter ele, autor, também tentar ser um popstar. E o popstar tem que ser onipresente. O popstar tem que saber contar piadas, ser engraçadinho na hora certa, entrevistar em programetes de tevês locais, seduzir o público com sua lábia ou sua facilidade histriônica ou de atuação. Enfim, o autor-espetáculo.

Independente de questionar ou não (se fosse eleitor de Bento eu questionaria) prefeito Lunelli por investir 170 mil reais em livros do Gabriel para a rede pública, show e eleger o rapper, escritor e empresário de futebol, patrono da feira do livro de Bento Gonçalves, em detrimento de autores locais (imagino que em cima das premiações do autor e de sua campanha pela alfabetização infantil tenha passado o pensamento do político candidato a reeleição), pergunto: O que nos levou a chegar a este ponto? Obviamente não sei como autores conseguem descobrir o que é pago ou não pra outros. Já partcipei de algumas, poucas, mesas e debates na minha vida de autor eo que ganhei sempre foi um aperto de mãos e no máximo um custeio da viagem (duas vezes e as duas no Paraná), mas jamais imaginei descobrir o que os outros ganham. Aliás, nem me interessa.

Assim questiono a denúncia e revolta de Fabrício Carpinejar ao reclamar do cachê pago aos autores gaúchos contrariamente ao tratamento de estrela oferecido para Gabriel, o Pensador. No momento em que um autor se torna espetáculo, um homem-banda a se apresentar pelo país e pelo mundo, para pagar suas contas, que seja, mas se desviando do assunto principal, a literatura, em função de chamar a atenção para ele autor, seu estilo de vida, seus modos estudamente afetados e seu carisma pessoal como entrevistador-apresentador, não estaria o autor também alimentando o monstro que supostamente agora se revolta? Não seria, Carpinejar, de repensar o papel do autor-espetáculo no atual contexto literário nacional? Até onde ele auxilia na criação de um mercado leitor de ficção fragmentado e segmentado? Até onde o autor-espetáculo não se suicida ao incentivar os governos e patrocinadores a investirem no espetáculo do autor? Até quando para nos transformarmos em "artistas da fome"?

Se continuar assim não escreveremos mais livros. Faremos shows em teatros e nossos livros serão dados como brinde. O público, embevecido, nos amará (tem um público que o ama mesmo sem nem ler o que tu escreve, Carpinejar), mas até onde entra a literatura nessa porra toda?  É isso que devemos questionar, não somente os cachês pagos. Ou questionamos onde queremos chegar com a espetacularização da literatura ou então eu vou achar que tudo não passou de mais uma chama perdida na velha fogueira das vaidades que tanto mal já fez e ainda fará na literatura nacional. Resumindo, um chilique.

Guy Debord comemorando com amigos a vitória da "sociedade do espetáculo"

quinta-feira, 19 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 14


Capítulo 14

Geralmente Paulo marcaria o almoço em algum restaurante do Moinhos mesmo. Mas não era o caso. Eram espanhóis perdidos em Porto Alegre, capital do sangue e da carne crua. Nos dirigimos a uma destas churrascarias horrorosas com danças típicas e boi berrando no espeto de tão vivo. Eram estrangeiros querendo assistir nossos exóticos costumes, entre eles o da doida de ressaca que passa a mão nos peitos enquanto apresenta um projeto de marketing. Eu.

Chegamos antes e Paulo me entregou um cálice de conhaque no bar. Fiquei olhando pra ele. É bom pra digestão. me diz. Que conversa de velho, Cocó. E também pra matar ressaca. Que seja. Bebi. Queimou minha garganta mais que o mata rato do guarda do estacionamento. Como os espanhóis não chegavam, bebi mais uma taça. Desceu bem melhor. Cocó me olhou mais estranho ainda. Ou eu estava enxergando tudo mais estranho. Sei que como aqueles espanhóis desgraçados sendo que um deles era o meu Javier Bardem da hora, não chegavam nunca e eu já tava me coçando toda e com vontade de abrir ainda mais a camisa no peito, quando pedi mais um cálice do tal conhaque e fiquei pra lá Bagdad, na verdade, pra lá do Afeganistão. Eu tava na caverna do Osama. E sem papoula.

Os espanhóis chegaram e sentaram-se em uma mesa próxima ao palco de apresentação. Mal nos cumprimentamos e pedimos as bebidas, vinho tinto porque eles eram espanhóis negociantes mas longe de casa e queriam era mais aproveitar longe de suas respectivas e eu, euzinha, era o centro de atenções daqueles chauvinistas cafajestes e salafrários. O mais velho se chamava Carlo, e o Paulo insistia em chamá-lo de Carlitos. E cada vez que o chamava de Carlitos eu ria e bebia mais vinho. Nem queria saber daquele catatau de carnes sangrando. No matambre os espanhóis se perderam. O cara de bebê, que mais parecia um emo de férias, tinha um modo afetado de falar até para um castelhano, pediu três matambres um atrás do outro. Nem quero imaginar se alguma mulher, ou homem, ou até o velho, vão dormir com o babyface hoje de noite. Na verdade o velho, que nem é velho, tem seu charme. O Paulo é que esculhamba com toda a moral chamando ele de Carlitos. parece que são amigos de colégio. Dá uma impressão muito chata. Eu continuo falando e nem sei direito quais são os assuntos e se me entendem, pois apesar de arranhar num dialeto portenho, que não é espanhol, eles me compreendem, e riem sem parar. Menos o gostosão. Ele não é espanhol. É gaúcho. De Porto Alegre. Mora duas quadras da minha casa e jamais vi ele ali por perto. Eu trabalho muito, responde ele. Não bebe vinho. Só água com gás. Me observa mais que os outros. Eu sinto calor quando olho pra ele. Sabem calor? A gente olha para alguém e a temperatura sobe mais ou menos uns 15 graus Celsius. Imaginem então naquela churrascaria que mesmo com ar condicionado era um forno?

Os espanhóis pedem outro vinho. E outro. Eu explico, não sei como, as danças que aquela gente faz no palco. Chamo a chula de dança do pau e o Leonel, é o nome do gostoso, ri alto. Os espanhóis não entendem e ele não explica. Na verdade o negócio já está fechado. Paulo e o coroa vão se reunir depois do almoço na agência e assinar os papéis. Minha parte está feita. Léo, ele prefere ser chamado assim, me explica que é pra não se lembrar que o nome é uma homenagem ao Brizola, que ele não quer nem saber. Me fala de política. De economia. Ele poderia falar sobre fissão nuclear que eu acharia o melhor assunto do mundo assim mesmo. Continua falando, Léo. Eu quero dar pra ti. Eu vou te comer. Estico o braço com o cálice na mão. Mais vinho?


terça-feira, 17 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 13


Capítulo 13

Maquiagem refeita, ou feita, afinal eu tava um desastre que pior que Iraque depois da invasão com homens bomba espalhados pelo meu corpo prestes a explodir e me detonar de vez. Combino com Quico que, aconteça o que acontecer, os dois vão se divertir, afinal, é sexta, dia mundial do fiasco, e pior do que está não fica, não é? Fica. João ligou para avisar que não tinha chegado chaveiro nenhum. Sua voz começa a passar um tom de desespero. Sua mulher chegaria às três da tarde, a conexão atrasou o voô que fazia escala em São Paulo e ela demoraria um pouco mais. Desligo e tento encontrar o chaveiro. Não atende. Ligo de novo, uma mulher atende. O que? Mulher dele? Tá no hospital e quebrou a perna? Não pode! De todos os chaveiros de Porto Alegre tenho que chamar logo um que bate num táxi e quebra a perna?

Paulo me espera na sacada de sua sala. A sala originalmente não tinha sacada. Ele mandou fazer. Só para fumar. Me chama. Peço um cigarro dele. Desses lights. Paulo está na crise do cinqüentão. Fuma cigarro light. Caminha no fim da tarde no parque sem camisa. Separado, vai em bares à procura de idiotinhas incautas ou aproveitadoras cretinas. Ele não se importa. Resume tudo com um "fazer o que?" Paulo é assim. Fazer o que? Ele precisava de mim para fechar o negócio e aumentar consideravelmente o faturamento da agência. Pagar mais para suas duas ex e para suas três filhas. Sempre foi um cretino. Não seria agora que deixaria de ser. Muitas pessoas nunca deixam de ser. Eu jamais fui. Sou Marina e gosto de falar na cara.

Na cara eu falo logo que estou com problemas, fui assaltada, quebrei o salto, não consigo pegar meu carro e não falo que tenho um homem que não lembro quem é com quem certamente trepei depois da festa de ontem trancado no meu apartamento. Que o homem é casado e quer que eu vá buscar a mulher dele no aeroporto. Enfim, uma história muito comprida e confusa. Só a parte do assalto já o cansou. Ele acende o meu cigarro e pergunta se eu voltei a fumar. Sim. Não. Sim e não. Só hoje, respondo. Ele sorri. Se fecharmos este contrato tuas contas desse mês ficam por minha conta, responde Cocó, num acesso de bondade que jamais eu tinha visto. Ele sorri e eu me flagro passando a mão no peito de novo. Ele pisca o olho. Muito perspicaz, Marina. Muito mesmo. Assim tu conquista o mundo. Tarado.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

MALDITA CHAMPANHA - Capítulo 12


Capítulo 12

Paulo espera Marina em sua sala. Ela entra, sandálias da faxineira arrastando no chão. Marina, querida, o chefe a bajula mais que o normal. Ela sabe que ele sempre teve uma quedinha por ela, ou por comer ela, coisa que ela imagina, mas não tem certeza. Ele tem. Marina, recebi agora um telefonema de nossos clientes. Eles querem almoçar para acertar alguns detalhes mas eu acredito que querem fechar o negócio. Então, a tua presença é muito importante. Pode não parecer profissional, mas a tua apresentação foi tão envolvente que até eu mesmo me convenci que eles tem que ser nossos clientes. Não sei daonde tu tirou essa força de convencimento, nem quero saber, Paulo imagina, como todo homem sempre pensa, que Marina deve é estar sendo bem comida, afinal, na cabeça dos homens se passam pensamentos assim, do tipo, fulana está de mal hoje porque não trepou ou faz tempo que não trepa, ou seja, é mal amada. Marina não era mal amada. Marina não era nem amada. tinha casos esporádicos. Que soubesse ela nunca apareceu com um mesmo namorado em duas festas seguidas da agência. Marina é fogo, pensa Paulo. e continua, portanto, quero que tu saia comigo daqui a pouco para este almoço e continue no mesmo clima, entendeu?

Respiro. Caralho, porra! Calma. Não é uma boa hora pra se estressar. Não conta nada pra ele da história do João, do assalto, do carro, do sapato, do gostosão. O gostosão! Sim, Cocó, quer dizer, Paulo, claro que eu posso almoçar com os espanhóis. Será um prazer terminar minha explanação, afinal, se pegarmos essa conta, será nossa maior conta e imagino, não falo, imagino, que eu também ganhar um aumento, não é? Óbvio que ele não vai responder, me embromar, me encher de presentes e regalias, mas aumento, o de sempre. Aumento de trabalho que publicitário é um tipo de escravo do glamour, entendem? Não? Olha só, não tem dia, não tem noite, não tem hora extra. tem a loucura do chefe, a nóia dos clientes e o saco de aturar os terceirizados. Tudo é um caos. Como eu depois de uma garrafa de champanha. Talvez por isso eu beba. Não tenho namorado. Não tenho amor. Não tenho vida. Claro que sim, Paulo, vou retocar minha maquiagem e volto.

Retocar com o que, cretina? Não tem como retocar. Não tem pra quem pedir. Não tenho bolsa, não tenho nada. A bicha! A bicha do cafezinho. Quer dizer, eu sempre encontro no cafezinho. Ele nem trabalha aqui comigo, trabalha em outra sala. Mas é uma bicha amiga do atendimento. Amo ele. Todas mulheres amam bichas amigas. Amar mulher amiga é outra coisa. Mulher é mulher mas sempre pode te trair. Bicha também pode. Mas não é mulher. Pode tentar pensar como uma. Uma mulher pode pensar como bicha. Mas pensar como mulher? Nem o narrador quando tenta se passar por mim, esse machista de merda. E nem tenta interferir agora, babaca. Sou eu e o Quico, minha bicha. Sim, todas nós temos uma vez na vida uma bicha. Hoje o Quico é a minha. Quico não está no café. O procuro na sala. Está saindo do banheiro, os olhos fundos, como se tivessem sido enxugados depois de uma choradeira de súbito.

Que foi Quico? Não foi nada, não. Eu ainda meio nervoso, o Lucas, o namorado do Quico, agora ex, como ele vai me explicar, me largou. Assim, sem mais. Nem menos. E eu fico parado pensando e não lembro o que posso ter feito para que ele terminasse comigo. Terminou porque homens idiotas terminam por nada, Quico. E falava assim, como se Quico fosse a mulher e Lucas, o homem. Talvez fossem. Como ela disse, eu não entendo nada. Marina pega em suas mãos e pede que ele leve sua bolsa junto. Quico não tem problemas em carregar uma enorme bolsa. Não é uma bicha-mulher, quer dizer, se veste de mulher. É apenas um pouco mais espalhafatoso que o normal e adora uma maquiagem. Aquela coisa Boy George, menina-homem, sabem? Pois levei a bolsa e disse. Quico, eu horrível e tenho uma reunião mega-super-importantíssima, então, olha aqui, tu me ajeita a cara agora e me deixa "a" mulher que eu tenho que destruir corações e arrebanhar bolas sob meu domínio. Ele entendeu o recado. Quico sabe tudo, ele até ajuda na maquiagem quando pinta uma sessão de fotos. E, além do mais, é minha única, único, amiga que carrega junto o estojo de maquiagens. Com demaquilante, claro. Imperdoável não ter um demaquilante. Fico o óbvio maquiada sem parecer. Alguém para o gostosão chamar de seu. Esquece. Capaz dele gostar do Quico. É tão bom que deve ser gay. Os melhores homens são todos gays.