A literatura pop não é só tentar ser pop. É tentar não ser limitado. É contra a literatura acadêmica, contra a literatura dos guetos, contra a literatura de auto-ajuda. Essa confusão urbana de cultura pop, classe média sem perspectivas e histórias de amor. A literatura pop é o começo e o seu próprio meio para o fim. A literatura pop é diversão e se não for para nos divertir, que se foda, pois a literatura pop também é feita disso. De foda-se!
Desde sempre homens e mulheres se
desafiam. Dizem que a primeira bebida fermentada no mundo foi uma
fruta que apodreceu e um homem esfomeado a comeu e viu que o lance
dava barato. Então começou a colher frutas e as deixar apodrecer
para tirar o suco e beber. Alguns especialistas dizem que essa
industrialização foi o início da sedentarização do homem e o fim
da sociedade matriarcal. Com o homem produzindo perto de casa, ele
queria mais poder, por certo. A mulher, que antes mandava na tribo
enquanto os machos saíam pra caçar, e só enchiam ela quando
queriam sexo, deu um jeito de manipulá-los. Foi daí que nasceu o
domínio pelo sexo. Os homens, tropicando após ingerir um pouco da
goroba, queriam coisinhas com as mulheres. Estas criaram regras. As
regras. Toda as regras. Antes não existiam regras. São as regras
que nos comandam, nós homens, até hoje. Marina conhece as regras
por instinto. São milhares de anos em que elas são passadas
geneticamente e vão sendo melhoradas e adaptadas, independentemente
da sociedade que tenta as cercear. Pelo medo ou pelo terror. Nada
pode vencer as regras que existem desde sempre. As regras são como
as frutas que caem do pé e fermentam ao sol. Por mais que tentem
destruí-las, elas governarão a Terra. Duvide quem quiser. Mulheres
e champanhas governam o mundo.
Quico estava com fome, afinal, era
muita champanha para pouca proteína. Baixamos de táxi porque eu não
queria dar chance pro azar de novo, vai que fura um pneu e eu, na
rua, sem estepe, por aí, largada, com um amigo gay pra ajudar a
pedir ajuda? Não. Tô fora. Quico queria comida chinesa, mas eu
disse não. Eu queria algo mais massudo. Me deu a louca e pedi pra
descer num bauru. Em Porto Alegre é assim, lugar onde tem bauru a
gente chama de bauru. E bauru é um pão cervejinha, um pão que
parece uma bunda com um rego fundo, enoooorme, com um bife enooorme
dentro e cebola e queijo e, se quiser ovo. É um absurdo. Quico me
olhou com um olhar de quem diz goooorda, mas desistiu de falar. Ficou
na porção de fritas, nervoso mergulhava as batatas no fundo do pote
de maionese, que veio junto com o meu bauru e eu devorei como uma
cavala, cansada que tava de ver tanta gente, os espanhóis, comendo
carne e eu só na salada e na enganação. Fodam-se os pneus que
podem inflar. Amanhã eu furo eles caminhando no Parcão. Dou um
jeito. Durmo um dia todo. Não como nada na semana que vem. Vivo de
água e bolacha integral. Dane-se! Esse é o melhor lanche janta que
fiz nos últimos anos. Dane-se o bafo de cebola. O cheiro de carne.
Léo, me espera. Caminhamos um pouco e paramos num posto de gasolina.
Compramos garrafinha de champanha e vamos bebendo pela rua como se
fossem long necks.
Estava tão bom caminhar pela rua e
pela noite que tinha ficado tão fresca e iluminada que não dava
vontade de pegar outro táxi, outro stress, outro sujeito contando,
falando, enchendo, saindo e entrando em curvas, que decidimos fazer o
resto do caminho até a festa a pé. Não era muito longe. Só umas
três ou quatro quadras. Como se fosse verão e eu voltasse a ser
adolescente em Capão da Canoa, Atlântida, quer dizer. As noites na
praia, alguns quilômetros pela noite, bebendo capeta e falando
bobagens com os guris da rua. Tudo era festa no verão e nós éramos
garotas estúpidas de classe média somente querendo beber longe dos
pais e fazer fiasco. Quico completou. Era mesmo bom no verão, não
é? Não sei como ele chegou no comentário que eu esperava, afinal,
eu só estava pensando e não contando, como conto para vocês, mas
Quico sentia o mesmo que eu, só que com um ar de nostalgia
reprimida. As suas lembranças eram truncadas pelo preconceito. Me
deu a mão e começou a pular e rir. Tu pegou dinheiro, doida? Não.
Quem pagou a conta no bauru? No posto sei que tu pagou no cartão,
mas quem pagou meu lanche? Quico riu mais alto. Ninguém. Soltou
minha mão e saiu cantando na frente: Dejeitomaneira,nãoquerodinheiro,queroamorsincero! E ria como uma criança em pleno verão. Um
adolescente bêbado em êxtase pela beira-mar fria e agitada do
litoral gaúcho.
Quico vem e me abraça. Quico é
verdadeiro. E é homem. Muito mais que muitos dos que conheço por
aí. Convido ele pra ir junto comigo para casa. Ele concorda. Antes
passamos na casa dele e ele pega uma muda de roupas. Chiquerésimas,
me diz. Depois vamos para a minha casa. Enquanto Quico beberica o
champanha que ainda restava na geladeira, caralho, quanto bebi ontem?
Eu tomo banho. Depois ele toma um banho enquanto eu coloco minha
roupa. Coloco um Bowie para dançar. ModernLove.
Bowie é bom até quando é pop e brega. Quico sai do banheiro já
vestido e com uma toalha enrolada na cabeça. Icatchapaperboy/Butthingsdon'treallychange/I'mstandinginthewind/Butineverwavebye-bye.Nos
juntamos, secador na mão, cena mais clichê do mundo. ButItry.Itryyyyeeeee!
E nos atiramos no sofá rindo sem parar. Bebemos a garrafa de
champanha no bico e Quico me dá um selo na boca. Sinto o quentume
subindo pela garganta e monto nele. O agarro com força e meto a
língua dentro de sua boca. No começo ele responde, mas depois pára
e eu me levanto puta. Porra, Marina! Tu é demais, amiga! Demais! Eu
começo a rir de mim mesma e voltamos a dançar. Quero dançar. Quico
não se importa. Ele também quer. Mas não comigo. Ele gosta de
meninos. Eu não o condeno. Adoro homens. Já tentei não gostar.
Juro que eu tentei. Mas não nasci para ser lésbica. Uma ou outra
vez, mas mulher, não sei, os homens têm razão, mulher só
incomoda.
Eu era bem mais nova, não que eu não
seja nova hoje. Era mais nova. Andava com uns roqueiros, coisa de
guria, eles tinham uma banda porto-alegrense. Dessas que nem vale a
pena mencionar. Faziam sucesso nos anos 90. Eram os queridinhos do
underground. E eu andava com eles. Cheguei a morar na pocilga onde
eles moravam. Durou pouco tempo. E tinha uma guria que era louca por
mim. Tássia era o nome da doida. Pintava os cabelos de preto e rosa
e me seguia insana. Stalker mesmo. Até que uma noite depois de uma
garrafa de vodca, na época eu era uma dessazinhas que me deixava
levar pelo glamour da vodca pura, coisa de estudante de faculdade
metida a artista que eu era, ela veio com uma conversa de que eu
precisava dar um beijo nela, nem que fosse só por dar mesmo, as
lésbicas são viris, mais viris que os homens, quando querem uma
mulher. A tal Tássia me agarrou mesmo. Quase à força. Depois me
acamei. Continuei um pouco, mas quando peguei no queria realmente
encontrar me senti castrada. Eu precisava de um pau. Ela queria outra
coisa. Não era justo. Ela insistiu. Eu não sou viril mas sou da pá,
entendem? Da pá virada. Dei-lhe um tapa com as costas da mão
daqueles que homem mau dá em mulher em filme antigo, sabem? Aqueles
que aprendi com meu mano mais velho. Ela deu um rodopio pra trás e
começou a chorar de raiva. Não revidou. Não falou nada. Nunca mais
me olhou nos olhos. Quando eu a encontrava em festas ela dava um
jeito de agarrar a primeira que aparecia e fazia questão de ficar se
esfregando perto de onde eu tava. Fiquei com medo. Mulheres me dão
mais medo. Prefiro os homens. São safados, mas, na maioria das
vezes, burros. Os coitados.
Queéisso, Marina? Pra cima! Quico
começou a dançar um Blur como, agora, uma bicha louca mesmo,
enquanto procurava outra champanha na geladeira e fazendo sinal de
negativo com a mão, cantava: Girlswhoareboyswholikeboystobegirls...
João pega um táxi para buscar seu
carro e, depois, quem sabe, passar no seu trabalho pra enganar que
passou o dia numa obra. Homem cafajeste sempre arranja desculpa. Nem
que seja tão furada que pareça verdadeira. Essas são as melhores.
Eu e Léo vamos em outro na seqüência. Direto para o
estacionamento. O funcionário, com a mesma cara de sono da manhã.
Fumava o mesmo cigarro. Mas me olhou diferente quando cheguei com
Léo. Abrimos o porta-malas e conferimos o estepe. Estava inteiro.
Nem pensamos muito pois as nuvens de chuvas se dissipavam e tínhamos
um pneu de carro para trocar. Tínhamos, não. Léo tinha. Ainda bem
que usávamos o mesmo tamanho de pneu, acho que é tamanho que se
diz, e Léo ficou depois de me comprar um estepe novinho. Ele tirou o
paletó, nem me dei conta que ele usava um. Logo eu que odeio esses
chatos de paletó. que sempre fui a rebeldosa que queria um Stone pra
me levar embora. Tá, poderia ser um desses Galagher feioso também,
desde que me levasse para sempre numa louca aventura romântica. Léo
agora está ficando com a barba escurecida. Um cheiro de homem limpo
que vai suando aos poucos. Eu floreando sobre nhaca e ele ali de
mecânico trocando aquele pneu furado. Por companheirismo, aguardei.
Assim que terminou nos trocamos números de celular e ele prometeu
que me ligava. Pensei que ia me cumprimentar com um beijo, mas não.
Se moveu para o lado, entrou no carro e depois levantou a mão
esquerda e sorriu para mim, eu, estatelada do outro lado da rua
acendendo um cigarro, agora sim, da marca que eu fumava quando não
era ex-fumante, e levantando o braço com o cigarro aceso de volta.
Terminei de fumar e voltei voando para a agência.
Cocó nem se importou de me ver
chegar mais que depois dele, com outra roupa e ainda fumando o
cigarro que acendi no térreo. Entrei prédio a dentro fumando. Antes
passei pela faxineira, Kátia, o nome dela, e lhe devolvi as
sandálias emprestadas. Agradeci e ela disse um "não tem de
quê" tímido. Agora eu tinha uma bolsa de novo e uma mulher sem
bolsa não é uma mulher completa. Uma mulher tem que ser muito homem
para sair sem bolsa, mãos nos bolsos, fumando um Marlboro e fazendo
barulho de quem tira carne dos dentes com a língua. Tá, exagerei.
Cocó se levantou e veio até a minha mesa todo desejoso. Nem me
deixou sentar e já me mostrou o local onde os espanhóis tinham
assinado o contrato. Disse que eles estavam muito excitados e queriam
uma festa mais pesada. Fiz uma cara de quem diz. Mas não é num
puteiro, não é? Não era. Eles queriam dançar a valer e eu era a
convidada mais que especial. Pensei se Léo estaria na festa. Mas não
perguntei. Paulo passou depois mesa por mesa e cumprimentou a todos.
A partir da segunda teríamos muito trabalho, mas hoje era dia
comemorar. Abriu uma champanha e me obrigou a tomar um gole. Tomei
uma garrafa. Tinha que dirigir até em casa, tomar um banho. Me
arrumar. O estagiário, o tal Pe, pa, seiláquemé, me olha e eu puxo
do bolso o dinheiro que a trouxa, quer dizer, a mulher do safado que
eu nem quero mais lembrar e acabei não dando nada ontem de noite
porque o incompetente nem me comeu, me deu. Ele pega e me dá um
beijo na bochecha. Ele é tão fofo! Pára, Marina. Nada de
mulherzice agora. Concentração. Sorrio de volta e agradeço o
empréstimo e o beijo. É tão bom tratar bem uma mulher. Os homens,
ou os que acham que são, tem esse costume de nos desdizer. De nos
passar pra trás. Mas não queremos bananas, pelo menos eu não
quero, subservientes. Queremos alguém que nos trate com carinho,
atenção e que seja um pouco tarado, óbvio. Sempre me envolvi ou me
apaixonei, ou os dois, pelos canalhas e algumas vez ou outra por um
banana, o que deu no final era que o banana era tão ou mais canalha
que o original. Pelo menos o original era o que era. O banana é o
que não tem coragem. E existem aqueles homens que não são nem
canalhas, nem bananas e nem a mistura dos dois. Existem os
verdadeiros. Muitas vezes confundimos eles com canalhas. Ou com
bananas. Mas não. São apenas situações. Tudo depende de como a
situação se cria e se perde. Os verdadeiros não criam. Nem perdem.
Eles simplesmente deixam estar.
Os porteiros existem desde a
antiguidade. Não sei dizer ao certo se desde o Egito, mas certamente
desde aquelas cidade-estados da Mesopotâmia, Grécia ou Israel. As
cidades cercadas por enormes muralhas para se protegerem dos inimigos
e um portão de entrada. No portão, guardiões. Os porteiros de
então. Imagino que os porteiros sabiam muito mais que os próprios
governantes. Os porteiros sabiam tanto que poderiam ser os
governantes. Os porteiros viram Jesus adentrar Jerusalém se é que
existiu Jesus. Jerusalém dizem que existe, mas prefiro crer que um
deles sabia que Sodoma ia virar fósforo nas mãos do deus hebraico e
deu no pé antes disso. Os porteiros da Grécia eram, antes de tudo,
uns boca abertas, claro. imagine o tapado que deixou entrar o cavalo
em Tróia? Deveria ser um tapume de burro.
Os porteiros da Idade Média também
deveriam ser uns fofoqueiros de marca maior. Naqueles séculos onde
todos eram vigiados ao entrar e sair por muros altos de cidades
fechadas, os porteiros eram os soldadinhos com poder da vez. Entrava
quem eles gostavam. Valia muito mais suas decisões que as predições
do chefe local. Com o advento do mundo moderno, os porteiros foram se
esparramando pelos prédios, fábricas, casas e países. Os porteiros
são os guardas de fronteiras, os policiais de posto fiscal, os leões
de chácara das festas. O porteiro é o sujeito com mais poder não
discutido do mundo.
Em Porto Alegre existiu um porteiro
que sabia tudo que acontecia no prédio em que trabalhava, claro. Só
que em vez de fofoquear, ele guardava. Jamais falou algo além de bom
dia, boa tarde ou boa noite fulano. Todos o respeitavam e mesmo
quando estavam em situações constrangedoras ele ajudava sem
reclamar, sem perguntar e sem julgar. Ele estava ali apenas para
cumprir seu dever de porteiro e não se meter na vida alheia. Um dia
um raio atingiu um poste ao lado do prédio e a corrente se estendeu
por toda a calçada. Uma frondosa árvore, dessas que pessoas se
juntam para abraçar e proteger, resolveu que era hora de desabar
sobre o prédio, o que ocasionaria muitos problemas, talvez, mortos e
feridos. O porteiro prontamente se retirou de sua base e se atirou em
frente á arvore, tomando choques que lhe causavam dores terríveis e
tentou segurar a árvore. Por mais impossível que possa parecer, a
árvore parou na metade da queda e o porteiro ficou ali, frito, entre
o chão e o tronco. Depois que a luz caiu e chegaram os técnicos,
acreditaram ser um galho preto colado ao chão, mas não. Era o
porteiro. Aquele que jamais reclamava. Os moradores ficaram muito
agradecidos, a polícia arquivou o caso e ninguém mais citou o nome
do porteiro. Dois meses depois o porteiro substituto relatou a
existência de um fantasma. Alguém que abria e fechava as portas na
frente dele e lhe contava as histórias mais escabrosas dos
moradores. Pediu demissão em seguida, O prédio nunca mais encontrou
outro porteiro que trabalhasse lá. Aos poucos os moradores foram se
mudando e o último disse ter visto um vulto se esgueirando enquanto
fechava o portão já tomado pelo ermo. Um verdadeiro porteiro jamais
abandona seu posto.
Caminhar já não é um bom exercício
pra quem só faz pilates quando se lembra, então imagina para alguém
de ressaca que resolve voltar a fumar depois de um tempo sem fumar e
ainda tem que encarar uma lomba debaixo de uma chuvarada. Léo
começou a rir da situação e eu comecei a lhe contar do que tinha
acontecido desde a manhã, ele só sabia da parte do homem trancado
na minha casa. Ele ria cada vez mais alto e isso serviu muito para
diminuir o impacto da subida no meu corpitcho combalido pela batalha.
No prédio o porteiro me olhou
curioso, mas abriu a porta sem perguntar nada. Os porteiros sempre
sabem mais da minha vida que eu mesma aposto. Eu quase não sei que
horas saio ou volto pra casa. Os porteiros sabem. Eles sabem quando
mudei de namorado, de caso, ou se chego bêbada e solteira ou se saí
de táxi ou de carro. Eles sabem tudo. Poderiam escrever um livro se
soubessem escrever. Ou quem disse que um deles não é por acaso um
desses escritores nerds reclusos que aceitou o cargo de porteiro só
para fofoquear a vida alheia e ter idéias para suas histórias? Vai
saber. Eu prefiro nem imaginar. Nem quero imaginar o encontro com o
tal João do outro lado da porta do meu apartamento. Batemos na
campainha só para avisarmos que já chegamos. O porteiro foi avisado
que chegaria um chaveiro dali a pouco. E o chaveiro realmente não
demorou muito a chegar. Disse que como o caso era de chave perdida
nada mais normal que ele abrisse com uma chave micha mesmo. Fico
imaginando se esse também não se aproveita e daqui a pouco sai por
aí assaltando casas de incautos, mas, imagino, ele não faria na
minha. Não tem nada para roubar. Só algumas roupas e bolsas de
grife que ele não saberia onde vender e daria pra qualquer putinha
em troca de um boquete.
João me olha assustado. Ele me
parece menos bonito, bem menos, que ontem. ainda mais perto do Léo.
Procuro rapidamente minha chave reserva. Agradeço por encontrá-la
logo. Abro o armário do quarto e salta uma caixa de sapato onde
guardo essas coisas e a chave cai direto no meu colo. Pego a chave
reserva do apartamento dentro da mesma caixa e troco de roupa. Coloco
um calçadinho baixo para não correr o risco de andar por aí de
salto quebrado de novo e Léo conversa com João na sala. Eles riem
alto. Quando volto pergunto o porquê de tantas risadas. João ri e
me explica que agora, mais calmo, não pode parar de rir só
imaginando a cara da mulher. Ele tem que buscar o carro no
estacionamento onde deixou ontem de noite quando veio comigo pra
casa. O que? Tu me deixou dirigir naquele estado? Que estado?
Pergunta ele. Doida de champanha. Ele ri alto. Não sei como dei pra
um idiota desses; Nós dois estávamos muito bêbados. Mal nos
beijamos e tiramos as roupas, ou tentamos tirar, e quando me dei
conta estava aqui, num quarto que não conhecia, no escuro e atrasado
para o meu trabalho. Nós não fizemos nada? Pergunto. Não. Ele
responde. Até onde eu lembro, só uns beijos. Mais nada. Léo ri
mais que ele. Eu me viro com raiva e volto para o quarto. Me olho no
espelho antes de ajeitar o cabelos, prendendo, claro, porque depois
de tanto desastre meteorológico, só prendendo, e começo a rir.
Mais alto que ele. Eu não dei. Nem bêbada alguém me come. Eu sou
uma desgraça. E voltei para a sala.
Um taxista no passado, ou no
presente, não se sabe ao certo, aparecia nos momentos mais
inesperados, tal como o chaveiro que lhes contei a história antes, e
levava as pessoas para onde realmente elas queriam ir e não aonde
elas pediam para que ele as levasse.
Uma guria de uns vinte e poucos anos
pediu para que ele a levasse ao hospital, quer dizer, ela não disse,
mas levava a mão na barriga e pediu pra deixá-la na Doutor Flores
no Centro, perto de uma clínica clandestina de aborto. O taxista,
que sabia o porquê dela pedir tal destino e passara por ali
justamente por isso, a levou para a casa do pai da criança. Ela
olhou para o taxista, chorou e pediu para que ela o levasse para
outro lugar. Ele deu de ombros. O pai da criança estava chegando em
casa. Tinha sido despedido e sua mãe abria a porta da casa quando
viu o táxi e a menina dentro dele e compreendeu tudo. Eles
conversaram e hoje em dia um padeiro de nome Sérgio tem um ajudante
que é um belo dum rapaz, a cara da menina.
Outra vez um velho pediu para ir para
casa, mas o taxista, que já sabia de suas intenções, o levou para
um bar da Cidade Baixa. Lá, em uma mesa repleta de velhos amigos, se
comemorava o aniversário de uma senhora dos seus sessenta anos.
Todos estavam sorrindo e bebericando vinho ou cerveja, quando o táxi
aportou, as cadeiras perto da rua, e todos olharam o velho e se
levantaram. Fazia vinte anos que ele não se encontrava com eles.
Tinha brigado com um deles por causa de uma mulher. A mulher,
inclusive, era a senhora de aniversário, tinha se casado com o amigo
e depois se separado. E todos sabiam da história muitas vezes
contadas e já por muitos esquecida. Menos pelo passageiro. Ele
começou a chorar no banco de trás e não quis sair do táxi. Foi a
aniversariante que se levantou da mesa, abriu a porta e o convidou
para sentar-se junto a eles. Ele a abraçou e todos se levantaram
para abraçá-lo. No outro dia o velho voltou para a casa, de
ressaca, e jogou na lata de lixo o revólver carregado que guardava
na gaveta da cabeceira da cama.
As histórias do lendário taxista
caberiam em outro livro de tantas que foram, mas aqui não é o caso,
portanto passo logo para o epílogo de suas aparições, dizem, que
aconteceu pouco tempo atrás, quando ele pegou uma certa mulher que
caminhava pelas ruas do Centro. Era tarde da noite e ela perambulava
solitária pela Borges de Medeiros. Poderia ser uma prostituta. Uma
isca de assaltante de taxistas, mas não. Ela entrou no táxi no
momento que este parou ao seu lado e nem perguntou porque ele parou e
nem disse para onde queria ir. Simplesmente o taxista acelerou Borges
abaixo, fez a curva no Mercado e se dirigiu a toda velocidade pela
Castelo Branco. A caminhante acendeu um cigarro fino e fedorento e
abriu a boca falando palavras indizíveis que só o taxista entendia.
Ele só respondeu que o mar era um lindo túmulo e nunca mais se
ouvir falar de suas corridas, muito menos da mulher solitária e
muito menos ainda de mares perdidos em fins de estrada.
Estava aliviada. Léo colocou uma
música do Oasis, nem gosto muito de Oasis, ele disse que gostava.
"Don'tlookbackinanger" ele cantarolava dirigindo Protásio Alves
abaixo quando baixou uma nuvem preta e começou a chover
torrencialmente. Mais um pouco e eu acho que chovia granizo. Léo
pegou uma rua lateral e senti o baque embaixo do meu pé direito.
Passamos por uma poça que escondia um buraco enorme nas pedras da
rua. Furou o pneu dianteiro direito. Léo saiu do carro e voltou
logo, com a maior cara de desânimo do mundo. O estepe tá murcho.
Pensei, mas que diabos, e logo depois imaginei que o meu deveria
estar tão murcho quanto o dele. Acho que dá pra andar até um
posto? Agora? No meio dessa chuvarada? Duvido. Me respondeu ele.
Pegou o celular e chamou um táxi. Sentou ao meu lado e esperou.
Estava ensopado. Os cabelos antes alinhados escorridos no rosto. Ele
tinha uma bela franja que escondia penteando o cabelo de lado. E
alguns fios que estavam nublando. Quase grisalhos. Pensei em
agarrá-lo ali. Era a hora. O disco do Oasis estava terminado. Era
uma coletânea dele mesmo, acho, e vinha com uma tal de ChampagneSupernova que ia crescendo e me fazia lembrar da champanha
de ontem e o conhaque que ainda queimava minha garganta. Passei a mão
na sua nuca e fiz um carinho sem pensar. Quando ele fez menção de
abrir a boca, um vulto alaranjado brilhava ao nosso lado. Era o táxi
buzinando.
O taxista era um desses que começa a
falar sobre o tempo e termina contando a história da vida. Só
queríamos chegar na minha casa, pegar a chave reserva do meu carro e
buscá-lo no estacionamento. O tal João era só um detalhe no meio
dessa história toda. Mas o taxista queria era falar dos seus sete
filhos e dos seus dois casamentos. Olha só, trabalhei, começa ele,
trabalhei como um cão danado, criei quatro filhos, tava casado fazia
vinte anos e do nada me apaixonei. Foi aqui nesse carro mesmo, peguei
uma passageira, mais jovem que tu, ele me olha e ri pelo retrovisor,
e quando vi a gente era amante e ela tinha engravidado. Como? Não
sei. Sei que faz quinze anos tô casado com a segunda e tenho que
pagar a pensão da primeira e mais os quatro filhos, quer dizer os
mais velhos já se viram, um até faz a noite do meu carro. Mas não
é uma vida louca essa mesmo? A Ju, minha mulher atual, sempre fala,
é a maldita espumante, como ela diz. Peguei ela numa saída de
casamento e ela tava sozinha, linda, arrumada, vocês tinham que ver,
uma princesa, tinha sido dama de honra, imagino eu a lindeza que
deveria estar a tal Ju saindo de algum casamento de pobre, mas enfim,
a história é dele não é mesmo? E ela me contou depois de anos que
estava bêbada e tontinha e quando me viu achou engraçado, me achou
mais velho, eu ainda não tinha essa pança de hoje, então ela
sentou na frente e em vez de pararmos na casa dela, paramos no motel.
Nem cobrei a corrida. Até hoje ela tenta me pagar. Mas eu não
cobro. Eu amo ela. É a mulher da minha vida. Dessa vida vou me
aposentar, como queria da primeira vez, trinta e cinco anos de carro
é muita estrada. Pegar a neguinha e morar em Tramandaí. Já separei
uma poupança e tenho uma casa em vista por lá. Criar os guris
soltos, ter uns cachorros e no verão dá pra ganhar uns trocos com
um carro por lá. Sem pensar muito. Ela trabalha com crianças, se
formou pedagoga, sabem? E pra pedagoga sempre tem trabalho, tchê. Eu
já ia quase pedindo pra ele parar e eu poder fumar, parar e voltar
assim do nada dá uma vontade doida de fumar ainda mais, mas daí o
que aconteceu foi que o táxi simplesmente parou. Parou! Parou em
plena Goethe, debaixo de chuva e nem me perguntem como. O taxista,
que realmente agora via que tinha uma senhora pança foi lá atrás e
abriu a tampa do combustível. Depois voltou e olhou pra nós. Podem
descer. Eu chamo outro colega pra vocês. Essa merda de marcador não
tá marcando nada. Pensei que dava pra trazer vocês, mas acabou a
gasolina. Em trinta e cinco anos é a primeira vez que me acontece
isso. Sem gasolina. Não acredito. Nem eu, gordo, nem eu.
Toca o celular e é o João
perguntando se deu tudo certo com a mulher dele. Sim, filho de uma
puta, deu tudo certo, mas ainda não conseguimos um chaveiro. Como
estamos perto, apesar de toda a chuva que cai, encontramos uma dessas
casinhas de chaveiro abertas e conversamos com o próprio. Ele nos
promete que logo estará no meu apartamento e então combinamos de
nos encontrar lá e vamos a pé mesmo. O taxista ainda tenta
argumentar, mas desiste. Prefiro me molhar toda a escutar mais uma
vez essa papagaiada toda de história da minha vida. Odeio a história
da vida dos outros. Só gosto da minha e já acho ela um melodrama
muito do mal contado, viu narrador?