Capítulo 10
E vai se lembrar de tudo que tem
dentro da própria bolsa? Com certeza, cartão de crédito. Quantos?
Não sei. Nunca sei quais eu desbloqueei ou não. Tem os de livraria,
os de lojas de departamentos, os de supermercado, os de crédito
mesmo, dos bancos, sem valor nos dos postos de gasolina. É muito
cartão pra ligar e cancelar. Vai saber pra que vão usar e se vão
usar meus cartões O cara vem me rouba e troca bolsa fechada por
crack. Só me resta procurar essas drogas de páginas. internet e
ligar pros desgraçados do atendimento. Dizem que desgraça nunca vem
sozinha, não é? Sempre vem de três. Bom, trepei com alguém que
não sei quem é. Deixei a pessoa trancada dentro da minha casa. Fui
assaltada. Não consigo pegar meu carro. Quebrei o salto do sapato. O
que mais me resta?
Número da identidade? Como eu vou
saber se me roubaram a identidade junto, porra? Claro que não lembro
meu CPF. Tá achando que eu sou o que? Contadora? Eu nunca lembro o
número do meu CPF. Pra isso que ele está anotado em um cartão. Pra
eu ler quando precisar. Ou pra que tu acha que existem cartões? Se
não existisse bastava só a gente decorar no dia que tirava a
carteira. O cara da Receita Federal olha pra ti e fala: Presta
atenção, minha filha, contribuinte. O negócio é o seguinte. Vou
te dizer agora o teu número de CPF e tu decora. Mas decora mesmo.
Porque se tu perder o cartão não vai te servir de nada dizer teu
nome completo, entende? Sim, eu entendo. Óbvio que eu não lembro de
nada. Guria. Só meu nome completo e minha data de nascimento. Meu
nome é Marina nonono. Não é nononu. É nonono. Com entonação no
último no. Meu aniversário é primeiro de abril. Sim, o dia dos
bobos. E eu sou a maior de todas. Ariana e estúpida sem noção. Ah,
tu também é de Áries? Que legal, né? Quem sabe a gente faz uma
convenção de estúpidas na tua casa, por acaso, assim, do nada?
Não, eu não tô sendo grossa, só quero cancelar o meu cartão de
crédito antes que apareça o meu saldo sendo todo resgatado num
ponto de crack. Sim, já deve ter maquininha no ponto. Como eu sei?
Olha aqui, eu sou publicitária, já cheirei, todo publicitário um
dia cheirou. Claro que sim. Todos cheiram. Menos os alcoólatras.
Então eu não sei se tem maquininha na vila, mas deve ter um jeito,
não é? Olha, eu nasci quando o Fred Mercury ainda tava vivo. Não
sabe quem é? Tá, eu nasci quando o Elvis ainda não tinha morrido.
1977, caralho. Vai cancelar o cartão? Vai mesmo? Não quer saber o
nome da minha mãe? Completo? Ainda bem. Ela casou de novo e ainda
não decorei o nome do outro marido dela. Obrigado. Se eu tenho
caneta pra anotar o número do protocolo? Sim. Amo de paixão anotar
números de protocolos. Inclusive quando vou gozar, realmente gozar,
fico gritando os números de protocolos de 0800 que anotei no dia
anterior. Me dá o maior tesão. Diz de novo. Ah, tesão. Depois de
cinco orgasmos e duas barras de cereais, terminei. É foda se
endividar hoje em dia.
Mas ainda tinha mais. Sempre tem
mais. Eu estava sem um puto no bolso. Mas tinha um puto, quer dizer,
um filho de uma puta, em casa. E tinha que arranjar dinheiro. Olhei
em volta. Não que eu queira falar mal de meus colegas. Na minha sala
tem mais uns cinco ou seis, depende se contar estagiário.
Estagiário, vocês sabem, não é funcionário. Não é empregado.
Não é gente. É pior que escravo. Escravo pelo menos tinha o que
comer. Estagiário come resto. Resto do resto. Enfim, pedi pra Sara,
que me olhou com a cara mais sem graça do mundo. Aceita cartão?
Mandei ela enfiar no cu. A Clau me olhou antes de eu perguntar e
mostrou o carnêzinho de vale-refeição. Nem perdi meu tempo
respondendo. A Patrícia, só de pensar em dizer o nome, já desisti.
Me restaram os homens. Luís? Não. Ele estava certamente olhando
putaria e eu que não ia interromper a punheta mental dele. Sobrou o
estagiário. Não sei o nome dele. Pe, pa, pum, alguma coisa. Não
sei. Pedro? Não sei. Ele não tem cartão. Estuda na Famecos. Me
alcança vinte reais e olha para os meus pés. Ainda estou descalça.
Agora me lembrei. Eu fiquei com ele no fim do ano. Ou no meu
aniversário? Não lembro mais. Mas eu sei que fiquei. Me paga quando
der, me diz ele. Quase penso ai que fofo. Mas desisto. Hoje não acho
nada fofo. Agradeço e saio de perto. Sei que ele olha minha bunda.
Bom, pelo menos alguém olha minha bunda. Penso no gostosão
espanhol. Concentração. Mantenha o foco. Tirar o João de sua casa.
Pegar a corna no aeroporto. Tirar meu carro do estacionamento. Pegar
o gostosão, não! Não, falar com o Cocó. Tinha esquecido. Eu
também sou empregada. Mais que escrava, mas, mesmo assim, sem os
açoites, acorrentada.
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